INTERMEZZO
Como já declarei, não sou historiador. Mas adoro escrever histórias. Por isso, peço vênia aos historiadores para imaginar como Martim reagiu àquele encontro com o Imperador. Aquela audiência com Carlos V foi surreal, já disse. Deixou Lutero e seu advogado sem palavras. Eu sei, para a história só vale o que está nos autos – ou nas atas da Dieta de Worms, claro. Mas é impossível conviver com a ideia de que naquelas 24 horas entre o dia 17 e o dia 18 de abril de 1521 não tenha acontecido nada de relevante. Eu imaginei assim:
Embora a primavera começasse a esticar os dias, já era fim de tarde quando a comitiva de Lutero deixou a sede do Palácio Episcopal de Worms, no anoitecer de 17 de abril. Posso ver Lutero caminhando de volta para a hospedagem com o rosto crispado. Seus passos transpareciam indignação.
“O que foi aquilo?”, deve ter perguntado o advogado Schurff, para quebrar o silêncio. E Martim calado, talvez ainda preso à ordem de só responder o que lhe era perguntado.
“Desgraçados!”, era a palavra que eu imagino estar ecoando em seu cérebro desde que havia pedido vistas ao processo, para ganhar tempo. Ele não era disso, mas pediu tempo para pensar. Imagino eles chegando à hospedaria sem dar bola para ninguém, e Lutero querendo ir para o quarto, para organizar os argumentos. O dia seguinte seria pesado. Mas também posso imaginar a curiosidade do pessoal, querendo saber como foram as coisas, chamando-o de volta no pé da escada para os quartos: “Hei, Martin! Como é que foi?”.
Também não consigo evitar o pensamento de que Lutero deu meia volta, foi até uma mesa na recepção, que já ia sendo cercada por dezenas de hóspedes e curiosos. Até ouso imaginar ele sentando, chamar o serviçal e pedir uma cerveja. E o papo rolou, indignado. Ele estava de cabeça quente, e precisava ouvir conselhos. E aqui entram os livros de história, que registram que Lutero conversou com muita gente, para ouvir a opinião de amigos e consultores sobre a melhor estratégia para enfrentar a Assembleia Imperial no dia seguinte. Os historiadores também fazem questão de dizer que ele orou muito naquela noite.
Mas, naquela mesa imaginária, Lutero deve ter soltado o verbo. Vejo ele indignado por ter sido enganado e levado para uma conversa tête à tête com Carlos V e seus conselheiros mais chegados. Posso ouvir sua indignação: “Desgraçados! Pensa que me levaram diante da Dieta? Qual nada! Me conduziram à sala do trono, onde estava o “Kaiser”, o Eck, o meu advogado, um tradutor e pouca gente mais. O Aleandro só andava se esgueirando pelos cantos!”
A verdade é que Carlos V tentou ser astuto, pegar Lutero num canto e intimidá-lo sem direito a muita conversa. E obviamente Lutero não aceitou ter viajado duas semanas, enfrentado perigos para ir à Dieta e agora ser tratado como um moleque que, ao ver o imperador, ia se borrar todo, dizer okey okey, refutar tudo e voltar pra Wittenberg com o rabo entre as pernas. Eles o subestimaram! Ele não era mais um mongezinho, mas era professor da Universidade de Wittenberg, doutor em teologia, cujas preleções lotavam todo dia! O seu negócio é o argumento! Ninguém bota um pano na boca desse homem e o manda falar apenas sim ou não! Vão precisar mais do que isso para dobrá-lo!”
Imagino que naquela mesa imaginária todo mundo sabia uma solução diferente, faça isso, faça aquilo, não se deixe dobrar, você é o cara e por aí vai. Também imagino Lutero indo para seu quarto descansar e, agora sim, ter uma longa conversa com Deus. E ele orou fervorosamente, pediu a luz do Espírito Santo, implorou por proteção e clareza nas ideias.
No outro dia, ele levantou cedo e aproveitou a calmaria da hospedaria vazia por causa da retomada da Dieta e escreveu, diligentemente, a sua defesa.
O DIA D
No dia 18 de abril de 1521, Lutero enfrentaria a grande Assembleia Imperial. E ele estava preparado, afiadíssimo. Passara o dia se preparando. Cada palavra tinha sido virada e revirada dezenas de vezes; cada frase pensada e colocada na balança. Durante o almoço na hospedaria, ele ainda ouviu muita gente e muitos conselhos.
Pouco depois das quinze horas, chegou a escolta para leva-lo novamente à Dieta. O salão estava repleto de gente da nobreza, do alto clero, da corte de Carlos V, todos em seus trajes mais lustrosos, púrpuras e dourados, e muita gente empolada, emperucada. A plateia estava irrequieta à espera de Lutero e, num daqueles momentos de intervalo, parecia um enxame de abelhas em dia de calor intenso. Quando ele entrou de cabeça erguida no imenso salão, todos os olhos se voltaram para ele. O silêncio se fez como mágica. Era possível ouvir até o ranger do trono do Kaiser.
No meio do imenso salão, cercada pelos oficiais de justiça, estava de novo aquela mesa com os livros. Todos eles e, talvez, mais alguns que faltaram no dia anterior. Em um discurso acusatório, o oficial de justiça disse a Sua Majestade que alguns deles continham tanta heresia que serviriam para queimar cem mil hereges. Pecam contra o clero ao dizer que todos os leigos são sacerdotes pelo batismo, que os papas erram e os concílios tomam decisões equivocadas. O papa já declarou todos esses escritos heréticos, mas Lutero desrespeitou o trono de São Pedro ao apelar a um concílio e achar que não precisa aceitar o veredito papal. “Por isso, que vossa majestade ordene que todos esses livros sejam banidos e queimados em todo o reino!”.
Então, o oficial, pomposo e cioso do seu papel, refez as perguntas: “Foi você quem escreveu estes livros? Está pronto a refutar todas as heresias que estão escritas neles?”
Ah, mas agora o interrogado estava afiadíssimo. Primeiro Lutero se desculpou por desconhecer a etiqueta apropriada para a corte. Em seguida, ele respondeu: "São todos meus, mas, no caso da segunda questão, não são todos do mesmo tipo". E aí, num longo discurso que ninguém ousou interromper, nem mesmo o oficial de justiça, ele prosseguiu dividindo as suas obras em três categorias: 1) as obras que foram bem recebidas até pelos seus inimigos. “Estas eu não vou rejeitar”; 2) as obras que atacavam os abusos, mentiras e infâmias da igreja e do papado: estas ele não poderia rejeitar sem que isto seja visto como um encorajamento a estes mesmos abusos. Rejeitá-las abriria as portas para ainda mais opressão: “Se eu agora renegá-las então estaria fazendo nada além de reforçar a tirania”; 3) as obras que atacavam pessoas diretamente: “ eu peço desculpas pelo tom duro dessas obras, mas não rejeito a substância do que propus nelas.
Lutero termina seu discurso, dizendo: “A não ser que eu seja convencido pelo testemunho das Escrituras ou pela razão clara – pois, não confio nem no papa nem em concílios por si sós, pois é bem sabido que eles frequentemente erraram e se contradisseram – sou obrigado, pelas Escrituras que citei e por minha consciência, que é prisioneira da palavra de Deus. Não posso e não irei renegar nada! Pois, não é seguro e nem correto agir contra a consciência. Que Deus me ajude. Amém.
Segundo a tradição, Lutero teria declarado também “Aqui estou e não posso diferente” (são palavras difíceis de traduzir: “Hier stehe ich. Ich kann nicht anders!”, quase como “esta é a minha posição. Ponto!”). E terminou com um "Que Deus me ajude". Mas isso não consta nas atas da Dieta, nem em relatos de testemunhas oculares. Assim, com rigor excessivo, alguns historiadores duvidam que ele tenha dito essas palavras. Mas, já que o próprio Lutero as viu transcritas em vida e nunca as refutou, é possível que ele realmente as tenha proferido, mas que por razões óbvias não foi registrado em ata. De minha parte, e seguindo a sua índole, me parece bem óbvio que ele as proferiu.
Depois do discurso de Lutero, Carlos V disse, com ajuda de um tradutor: “Vocês sabem que, como descendente de todos os imperadores cristãos da nação alemã, dos reis de Espanha e da nobreza da Áustria, todos fiéis filhos da Santa Igreja Católica, estou decidido a manter tudo que meus antepassados e eu mesmo mantivemos até o presente momento. Pois é absolutamente certo que um único monge está errado em suas opiniões, ainda mais quando essas são contra toda a cristandade, conforme vêm sendo ensinada há mais de mil anos. Por isso, estou firmemente decidido a empenhar nesta decisão os meus reinos e potestades, meu corpo, meu sangue e minha alma!”
A plenária foi dissolvida sem o veredito final do Imperador.
Depois que Lutero deixou o imenso salão, ele diz, aliviado: “Por essa eu passei!”. E de fato ele passou pelo pior até aqui, e sem sair dali preso, já que o salvo-conduto que ele carregava consigo lhe dava 21 dias de liberdade. Por conta dele, ele ainda permanece em Worms até o dia 25 de abril, quando inicia sua longa viagem de volta.
Assim que ele e os seus príncipes apoiadores deixaram a cidade, o Imperador baixa o decreto o Edito de Worms, ordenando sua prisão e entrega diante do imperador para a execução da pena, mas ele já havia se colocado a caminho e estava livre como um pássaro.
No meio da viagem, o príncipe Frederico organiza um “sequestro” e some com Lutero no dia 4 de maio, para garantir a segurança de Lutero e para dar um sumiço temporário nele. As teorias de conspiração não demoraram, com o sumiço de Lutero. Até o deram como morto.
Mas essa é mais uma história para continuar. Uma hora dessas eu conto!