Die Mauer 1 - O mundo ficou pasmo no dia 9 de novembro de 1989. Os noticiários e jornais do mundo todo exibiam a euforia dos alemães da República Democrática Alemã-RDA, empoleirados sobre o até então intransponível muro de Berlim. O motivo da euforia era plenamente justificado. Acabava naquele dia uma das maiores "nações-cadeia" da história humana. Na prática, acabava ali a Guerra Fria. Com o fim do muro e o posterior desmonte da Cortina de Ferro, acabava também a União Soviética. Uma nova era na história humana estava sendo lançada naquele momento de alegria infantil, de gente pulando sobre o muro e abraçando estranhos como se fossem familiares.
Vinte anos depois, a nação alemã reunificada celebra - já não tão eufórica - a lembrança daquele dia. É que a República Federal da Alemanha-RFA pagou a conta dessa unificação. O fim do muro, que praticamente caiu de maduro, custou caro à nação mais desenvolvida da Europa, afetando dramaticamente seu poder aquisitivo e seu poderio econômico. Afinal, havia um vasto território a reinventar, restaurar, remontar praticamente do zero - uma tarefa que ainda está bem longe de terminar, mesmo após 20 anos. A extinta RDA é, de certo modo, o Nordeste da Alemanha de hoje.
Em 1986 eu conheci aquela fronteira. Estive cara a cara com o muro e mirei por cima dele, no mirante que dava para o Portão de Brandenburgo. Também andei pelas ruas da Berlim Oriental, angustiado com cada visão de um Stasi, descrito pelos nossos hóspedes como a visão do próprio demônio. Estive no Check-Point Charlie e ouvi o emocionado depoimento de um jovem que havia transposto a fronteira intransponível ileso, enquanto mostrava as fotos de centenas de conterrâneos seus que haviam sido fuzilados durante a tentativa de sair da RDA.
Em 1988 estive por 11 meses na Alemanha com a família... um ano antes do fim do muro e da Cortina de Ferro. Se alguém sequer mencionasse a possibilidade de que, um ano depois, aquilo tudo iria ser mera lembrança, seria chamado de doido varrido. Hoje, num processo tão revolucionário quanto o da eleição de Obama nos EUA, a nova Alemanha é governada por Angela Merkel, uma cidadã da extinta RDA.
Na primavera de 1988 convidamos um casal de aposentados, primos da minha avó e cidadãos da RDA a virem nos visitar na RFA. Um país já falido facilitava a saída de seus aposentados e até ficava feliz se não voltassem. E o ocidente pagava as aposentadorias como se tivesse resgatado vítimas de uma pandemia. Mas eles não vieram para ficar. Apenas se animaram com a possibilidade de conhecer o ocidente.
Minha esposa e eu ficamos impressionados com aquela visita. Durante 14 dias, aquele casal viajou conosco pela Alemanha Ocidental sem fechar a boca, literalmente. Nunca haviam visto tanta fartura, tanta facilidade, tanta riqueza, tanta tantura... Coisa que, de modo algum, era suficientemente óbvio para nós brasileiros, sem que nos atingisse profundamente também.
O contraste com o que estavam acostumados era tão gigantesco que quase adoeceram de emoção. A lembrança de sua carestia, das filas para tudo, dos mercados vazios, das vitrines desbotadas, dos produtos sem qualidade, dos 13 anos de fila para comprar o seu Trabant, tudo isso era o assunto inesgotável da conversa com eles.
Poucos meses depois, pegamos o nosso velho carrinho ocidental de 10 anos de uso e fomos a Dresden-Radebeul visitá-los. Uma semana dentro da cadeia comunista. Foi a experiência mais dramática das nossas vidas. Vimos que eles não estavam inventando, nem exagerando. Dresden era uma cidade ainda muito marcada por ruínas do tempo da guerra e havia muita decadência. Almoçar num restaurante era um exercício de paciência. Heinz e Elfriede quase nos cozeram vivos em sua casinha, com medo de que passássemos frio. Acho que detonaram a metade da sua ração de carvão de inverno para aquecer a casa naqueles dias. Na volta para casa, o nosso carro foi quase desmontado no posto da fronteira. A Stasi temia que algum cidadão oriental pudesse querer cruzar a fronteira encapado no forro dos bancos do carro...
Ainda hoje guardo centenas de slides dessa memorável visita, do muro de Berlim e da cerca que dividia as duas Alemanhas. O fim de tudo isso significou um novo tempo para a humanidade. Caiu o Muro da Vergonha, como se dizia à época. A sua queda deu a falsa impressão ao mundo de que o capitalismo havia derrotado o comunismo e que o livre mercado iria resolver tudo. A partir daí, também quem estava até então atrás da Cortina de Ferro iria ser incluído no mercado mundial de consumo quase que por mágica, e todos viveriam felizes para sempre.
Die Mauer 2 - Mas não foi bem assim. A euforia dos "vitoriosos" durou bem pouco. Em 2008, com a inadimplência gigante dos tomadores de empréstimos nos EUA, caiu o segundo muro, o de Wall Street. Em pouco mais de um ano, aquela exagerada abundância que tanto encheu os olhos dos nossos parentes que visitaram a RFA em 1988 apresentava a conta em todo o mundo.
Mais que uma simples crise, o rombo de Wall Street trouxe o segundo significado simbólico de que o mundo precisa para, realmente, iniciar uma nova era na história da humanidade. Agora, não é necessário somente fazer a contabilidade do fim do mundo comunista que havia por trás da Cortina de Ferro e do Muro de Berlim. Mas é necessário também abrir a caixa preta do capitalismo, agora falido, derrotado, jogado ao chão, impiedosamente.
O tempo provou que as duas contas jamais iriam fechar e que é preciso começar uma contabilidade totalmente nova, que seja global, que pratique inclusão, que seja sustentável e respeite os limites (muito tênues!) do único planeta que podemos habitar. Não há outro! Edificar uma nova casa para a humanidade fora deste nosso querido planeta é um muro intransponível. A colonização de Marte é um sonhozinho tão ridículo que chega a me causar um ataque de riso. A estratosfera é o nosso muro definitivo. Não contemos com a sua queda!
Por isso, longe da velha briga entre esquerda e direita, ocidente e oriente, comunismo e capitalismo, a humanidade precisa encontrar uma nova forma de administrar a única casa que lhe foi disponibilizada. A queda dos dois grandes muros foi o começo. Mas ainda há muitos para cair. Há o muro da indiferença com a África, isolada na peste e na fome. Há a cortina entre dois mundos religiosos, o cristão e o muçulmano. Se ela não vier abaixo, nos aguarda uma terceira guerra mundial, e de proporções apocalípticas. Há o muro entre ricos e pobres, o muro da fome, o da exclusão e o da falta de solidariedade.
Que o dia de hoje, em que a Alemanha e o mundo celebram os 20 anos da queda do Muro de Berlim, instale em nossos corações esta reflexão necessária.