segunda-feira, 19 de abril de 2021

DEPOIS DE WORMS, A CAÇADA A LUTERO



No último dia da Dieta de Worms, 26 de maio de 1521, já sem a presença de Lutero, foi decretado o Édito de Worms. O documento fora redigido com a substancial ajuda do núncio papal na Dieta, Girolamo Aleandro – aquele mesmo, que vivia se esgueirando pelos cantos e que só andava nas ruas de Worms com guarda-costas.

É possível imaginar que Aleandro ficou nos calcanhares do jovem imperador todo santo dia, desde o dia 18 de abril, para que emitisse um veredicto definitivo sobre Lutero e sua doutrina herética. Imagino ele dizendo no dia 25 de abril: “Vossa Majestade viu? O monge atrevido partiu de volta para Wittenberg. Agora ele se escafedeu! Vai ser muito mais difícil enquadrá-lo!”. E posso imaginar também Aleandro, insistentemente, tocando no tema por um mês, sempre que possível. E posso imaginar, finalmente, no dia 25 de maio ele quase se ajoelhando diante de Carlos V: “Vossa Majestade vai mesmo deixar que esta Nobre Dieta se finde sem emitir um documento final sobre o caso Lutero? Não acredito! Eu até já rascunhei um texto como, na visão do papa, deve ser este decreto”.

Até que, no último dia, com o rascunho de Aleandro forrando de conteúdo o decreto, Carlos V proclamou o Édito de Worms. Pelo tamanho do fac-símile na biblioteca de Worms (foto) é possível imaginar o quanto Aleandro se empenhou para não deixar escapar nenhum detalhe da condenação. Assim, é possível imaginar o grau de “imparcialidade” daquele documento – um improvável STF do século XVI ia votar a suspeição de Girolamo Aleandro por onze a zero!

O famoso Édito de Worms, de 26.05.1521, com o carimbo e a assinatura do Imperador Carlos V, Senhor Absoluto do maior império da Terra, no qual o Sol nunca se põe, declarava criminosas todas as pessoas que, “seja por atos ou palavras, defendessem, sustentassem ou favorecessem o que foi dito por Martim Lutero”. O Édito determinou ainda que Lutero fosse preso e levado até o imperador para ser punido como herege e estipulou uma generosa recompensa aos que ajudassem neste intento. Na prática, Lutero era um proscrito. Qualquer cidadão que o encontrasse podia prendê-lo ou até matá-lo.

O que salvou Lutero foi a proteção do príncipe eleitor Frederico da Saxônia, que mandou sequestrar o reformador, no dia 4 de maio de 1521, em sua viagem de volta para casa. Ele já havia completado mais de dois terços da viagem quando um grupo o surpreendeu, o retirou da carruagem e o encapuzou. O ataque foi ostensivo, para que testemunhas contassem com riqueza de detalhes o que presenciaram.

Lutero foi escondido no Castelo de Wartburg. Lá, ele ficou oculto por mais de um ano com o codinome de Cavaleiro Jorge (Junker Jörg). Pouquíssima gente sabia de seu paradeiro e Frederico ordenara sigilo absoluto. Tanto que os boatos até davam o monge como morto. Durante esse tempo, Lutero ficou traduzindo o Novo Testamento para o alemão.

Quando Lutero saiu do esconderijo, o imperador não pressionou para que ele fosse preso. Carlos V sabia que haveria um levante e ele perderia seu domínio sobre a Alemanha. Por conta do crescente apoio a Lutero entre os alemães e da proteção de alguns príncipes, o Édito de Worms jamais foi aplicado na Alemanha.

Já nos Países Baixos, o Édito foi aplicado contra os mais ativos defensores de Lutero. Em dezembro de 1521 Jacob Probst, prior do mosteiro agostiniano em Antuérpia, foi o primeiro a ser preso e processado nos termos do Édito de Worms. Em fevereiro de 1522, Probst foi compelido a abjurar publicamente os ensinamentos de Lutero.

Pouco tempo depois, os monges Johann Esch e Heinrich Voes se recusaram a abjurar e sofreram as consequências. Em 1o de julho de 1523 os dois foram queimados vivos em Bruxelas. Lutero prestou comovente homenagem aos mártires do movimento da Reforma. O Édito de Worms foi temporariamente suspenso em 1526, mas foi reinstalado na Dieta de Speyer em 1529.

LUTERO EM WORMS - TERCEIRO DIA (18.04.1521)

 


INTERMEZZO

Como já declarei, não sou historiador. Mas adoro escrever histórias. Por isso, peço vênia aos historiadores para imaginar como Martim reagiu àquele encontro com o Imperador. Aquela audiência com Carlos V foi surreal, já disse. Deixou Lutero e seu advogado sem palavras. Eu sei, para a história só vale o que está nos autos – ou nas atas da Dieta de Worms, claro. Mas é impossível conviver com a ideia de que naquelas 24 horas entre o dia 17 e o dia 18 de abril de 1521 não tenha acontecido nada de relevante. Eu imaginei assim:

Embora a primavera começasse a esticar os dias, já era fim de tarde quando a comitiva de Lutero deixou a sede do Palácio Episcopal de Worms, no anoitecer de 17 de abril. Posso ver Lutero caminhando de volta para a hospedagem com o rosto crispado. Seus passos transpareciam indignação.

“O que foi aquilo?”, deve ter perguntado o advogado Schurff, para quebrar o silêncio. E Martim calado, talvez ainda preso à ordem de só responder o que lhe era perguntado.

“Desgraçados!”, era a palavra que eu imagino estar ecoando em seu cérebro desde que havia pedido vistas ao processo, para ganhar tempo. Ele não era disso, mas pediu tempo para pensar. Imagino eles chegando à hospedaria sem dar bola para ninguém, e Lutero querendo ir para o quarto, para organizar os argumentos. O dia seguinte seria pesado. Mas também posso imaginar a curiosidade do pessoal, querendo saber como foram as coisas, chamando-o de volta no pé da escada para os quartos: “Hei, Martin! Como é que foi?”.

Também não consigo evitar o pensamento de que Lutero deu meia volta, foi até uma mesa na recepção, que já ia sendo cercada por dezenas de hóspedes e curiosos. Até ouso imaginar ele sentando, chamar o serviçal e pedir uma cerveja. E o papo rolou, indignado. Ele estava de cabeça quente, e precisava ouvir conselhos. E aqui entram os livros de história, que registram que Lutero conversou com muita gente, para ouvir a opinião de amigos e consultores sobre a melhor estratégia para enfrentar a Assembleia Imperial no dia seguinte. Os historiadores também fazem questão de dizer que ele orou muito naquela noite.

Mas, naquela mesa imaginária, Lutero deve ter soltado o verbo. Vejo ele indignado por ter sido enganado e levado para uma conversa tête à tête com Carlos V e seus conselheiros mais chegados. Posso ouvir sua indignação: “Desgraçados! Pensa que me levaram diante da Dieta? Qual nada! Me conduziram à sala do trono, onde estava o “Kaiser”, o Eck, o meu advogado, um tradutor e pouca gente mais. O Aleandro só andava se esgueirando pelos cantos!”

A verdade é que Carlos V tentou ser astuto, pegar Lutero num canto e intimidá-lo sem direito a muita conversa. E obviamente Lutero não aceitou ter viajado duas semanas, enfrentado perigos para ir à Dieta e agora ser tratado como um moleque que, ao ver o imperador, ia se borrar todo, dizer okey okey, refutar tudo e voltar pra Wittenberg com o rabo entre as pernas. Eles o subestimaram! Ele não era mais um mongezinho, mas era professor da Universidade de Wittenberg, doutor em teologia, cujas preleções lotavam todo dia! O seu negócio é o argumento! Ninguém bota um pano na boca desse homem e o manda falar apenas sim ou não! Vão precisar mais do que isso para dobrá-lo!”

Imagino que naquela mesa imaginária todo mundo sabia uma solução diferente, faça isso, faça aquilo, não se deixe dobrar, você é o cara e por aí vai. Também imagino Lutero indo para seu quarto descansar e, agora sim, ter uma longa conversa com Deus. E ele orou fervorosamente, pediu a luz do Espírito Santo, implorou por proteção e clareza nas ideias.

No outro dia, ele levantou cedo e aproveitou a calmaria da hospedaria vazia por causa da retomada da Dieta e escreveu, diligentemente, a sua defesa.

O DIA D

No dia 18 de abril de 1521, Lutero enfrentaria a grande Assembleia Imperial. E ele estava preparado, afiadíssimo. Passara o dia se preparando. Cada palavra tinha sido virada e revirada dezenas de vezes; cada frase pensada e colocada na balança. Durante o almoço na hospedaria, ele ainda ouviu muita gente e muitos conselhos.

Pouco depois das quinze horas, chegou a escolta para leva-lo novamente à Dieta. O salão estava repleto de gente da nobreza, do alto clero, da corte de Carlos V, todos em seus trajes mais lustrosos, púrpuras e dourados, e muita gente empolada, emperucada. A plateia estava irrequieta à espera de Lutero e, num daqueles momentos de intervalo, parecia um enxame de abelhas em dia de calor intenso. Quando ele entrou de cabeça erguida no imenso salão, todos os olhos se voltaram para ele. O silêncio se fez como mágica. Era possível ouvir até o ranger do trono do Kaiser.

No meio do imenso salão, cercada pelos oficiais de justiça, estava de novo aquela mesa com os livros. Todos eles e, talvez, mais alguns que faltaram no dia anterior. Em um discurso acusatório, o oficial de justiça disse a Sua Majestade que alguns deles continham tanta heresia que serviriam para queimar cem mil hereges. Pecam contra o clero ao dizer que todos os leigos são sacerdotes pelo batismo, que os papas erram e os concílios tomam decisões equivocadas. O papa já declarou todos esses escritos heréticos, mas Lutero desrespeitou o trono de São Pedro ao apelar a um concílio e achar que não precisa aceitar o veredito papal. “Por isso, que vossa majestade ordene que todos esses livros sejam banidos e queimados em todo o reino!”.

Então, o oficial, pomposo e cioso do seu papel, refez as perguntas: “Foi você quem escreveu estes livros? Está pronto a refutar todas as heresias que estão escritas neles?”

Ah, mas agora o interrogado estava afiadíssimo. Primeiro Lutero se desculpou por desconhecer a etiqueta apropriada para a corte. Em seguida, ele respondeu: "São todos meus, mas, no caso da segunda questão, não são todos do mesmo tipo". E aí, num longo discurso que ninguém ousou interromper, nem mesmo o oficial de justiça, ele prosseguiu dividindo as suas obras em três categorias: 1) as obras que foram bem recebidas até pelos seus inimigos. “Estas eu não vou rejeitar”; 2) as obras que atacavam os abusos, mentiras e infâmias da igreja e do papado: estas ele não poderia rejeitar sem que isto seja visto como um encorajamento a estes mesmos abusos. Rejeitá-las abriria as portas para ainda mais opressão: “Se eu agora renegá-las então estaria fazendo nada além de reforçar a tirania”; 3) as obras que atacavam pessoas diretamente: “ eu peço desculpas pelo tom duro dessas obras, mas não rejeito a substância do que propus nelas.

Lutero termina seu discurso, dizendo: “A não ser que eu seja convencido pelo testemunho das Escrituras ou pela razão clara – pois, não confio nem no papa nem em concílios por si sós, pois é bem sabido que eles frequentemente erraram e se contradisseram – sou obrigado, pelas Escrituras que citei e por minha consciência, que é prisioneira da palavra de Deus. Não posso e não irei renegar nada! Pois, não é seguro e nem correto agir contra a consciência. Que Deus me ajude. Amém.

Segundo a tradição, Lutero teria declarado também “Aqui estou e não posso diferente” (são palavras difíceis de traduzir: “Hier stehe ich. Ich kann nicht anders!”, quase como “esta é a minha posição. Ponto!”). E terminou com um "Que Deus me ajude". Mas isso não consta nas atas da Dieta, nem em relatos de testemunhas oculares. Assim, com rigor excessivo, alguns historiadores duvidam que ele tenha dito essas palavras. Mas, já que o próprio Lutero as viu transcritas em vida e nunca as refutou, é possível que ele realmente as tenha proferido, mas que por razões óbvias não foi registrado em ata. De minha parte, e seguindo a sua índole, me parece bem óbvio que ele as proferiu.

Depois do discurso de Lutero, Carlos V disse, com ajuda de um tradutor: “Vocês sabem que, como descendente de todos os imperadores cristãos da nação alemã, dos reis de Espanha e da nobreza da Áustria, todos fiéis filhos da Santa Igreja Católica, estou decidido a manter tudo que meus antepassados e eu mesmo mantivemos até o presente momento. Pois é absolutamente certo que um único monge está errado em suas opiniões, ainda mais quando essas são contra toda a cristandade, conforme vêm sendo ensinada há mais de mil anos. Por isso, estou firmemente decidido a empenhar nesta decisão os meus reinos e potestades, meu corpo, meu sangue e minha alma!”

A plenária foi dissolvida sem o veredito final do Imperador.

Depois que Lutero deixou o imenso salão, ele diz, aliviado: “Por essa eu passei!”. E de fato ele passou pelo pior até aqui, e sem sair dali preso, já que o salvo-conduto que ele carregava consigo lhe dava 21 dias de liberdade. Por conta dele, ele ainda permanece em Worms até o dia 25 de abril, quando inicia sua longa viagem de volta.

Assim que ele e os seus príncipes apoiadores deixaram a cidade, o Imperador baixa o decreto o Edito de Worms, ordenando sua prisão e entrega diante do imperador para a execução da pena, mas ele já havia se colocado a caminho e estava livre como um pássaro.

No meio da viagem, o príncipe Frederico organiza um “sequestro” e some com Lutero no dia 4 de maio, para garantir a segurança de Lutero e para dar um sumiço temporário nele. As teorias de conspiração não demoraram, com o sumiço de Lutero. Até o deram como morto.

Mas essa é mais uma história para continuar. Uma hora dessas eu conto!

sábado, 17 de abril de 2021

O SEGUNDO DIA EM WORMS - 17.04.1521

 

Bom dia! De volta ao túnel do tempo! Antes, porém, uma parada para acertar alguns ponteiros que julgo importantes para a nossa viagem.
Primeiro! Entre quem lê essas postagens há alguns historiadores, o que é uma enorme honra. Quero deixar bem claro que não sou historiador. E História é uma ciência complexa! Estudei história eclesiástica “pro gasto”, só. Sou um apaixonado. E, no caso de Lutero, sou fã mesmo! Assim, me perdoem os deslizes. Às vezes, sou meio empolgado e heterodoxo. Se você deseja aprofundar-se na biografia e obra de Lutero, recomendo: leia “De Luder a Lutero”, do mui estimado professor Martin Dreher! Aí sim, você vai ver como a vida de Lutero foi eletrizante. Eu li num fôlego só!
Segundo! Disseram aqui que, depois de ler essas coisas, não entendem como hoje a igreja luterana volta a sentar na mesa com a igreja católica. Quero dizer que eu também sou fã do ecumenismo e sento com católicos sempre! Somos parte da MESMA IGREJA DE CRISTO. Por quê? Simples: a) Quando isso tudo aconteceu, Lutero também era católico e amava a sua igreja, ainda que a criticasse; b) A igreja católica de hoje não é mais nem sombra do que foi há 500 anos! O Vaticano hoje é um estado independente de apenas UM QUILÔMETRO QUADRADO, sem a riqueza e o poder daqueles tempos. O Papa Francisco aprecia Lutero e seria apreciado por ele. Além do mais, Roma tem um grupo de trabalho que estuda REVOGAR A EXCOLUNHÃO DE LUTERO. Só queria dizer isso... Voltemos à nossa jornada.
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Não deixa de ser espantoso que este monge atrevido tenha chegado a Worms com a pele intacta. Tudo o que Lutero escreveu e disse sobre a igreja e o papa, sobre as autoridades, sobre a nobreza e sobre a liberdade cristã o havia tornado um inimigo público. Ele já havia sido declarado herege pela igreja e excomungado em janeiro. Na prática, isso significava que também a sua cidadania fora revogada. Qualquer pessoa podia se apoderar dos seus bens sem sofrer as consequências, ou mesmo tirar-lhe a vida. É muito mais do que o CPF retido na dívida ativa da União. O próximo passo seria a prisão e a fogueira. Até mesmo o salvo-conduto que o protegia naqueles dias foi ineficaz para muitos outros na mesma situação.
Mas Lutero tinha algo a mais. Ele era um trunfo político! Assim, nenhum milagre o fez chegar ileso até aqui.
Lutero era bom de briga e não desistia fácil. Isso encantou o príncipe Frederico da Saxônia. E o monge granjeou um fã príncipe! Longe de ser o anjo protetor de Lutero, esse príncipe tinha outros interesses nisso tudo – aliás, como todo político... Assim, tratou de salvar a pele de Lutero e apelou para que Carlos V o ouvisse primeiro, usando uma brecha na lei que dizia que ninguém pode ser proscrito sem poder se defender antes.
Com um armário repleto de velhas relíquias da fé, Frederico pouco se importava com as publicações daquele monge. Mas aah, sua ousadia ao peitar o Papa era algo de outro mundo! E o papa, que se metia em tudo, levava os príncipes alemães à loucura. Frederico queria se livrar das intromissões de Roma nos assuntos da Alemanha. Quem sabe, Carlos V podia dar um jeito.
Carlos V era um jovem fervorosamente católico... mas um bom aprendiz de político. Fazer alianças era a saída para evitar a divisão do seu vasto império, formado por Áustria, Espanha, Alemanha, Países Baixos, os reinos de Nápoles e da Sicília, a Lombardia, o Franco Condado, Artois, o Ducado de Milão e as terras do Novo Mundo conquistadas pela Espanha. Lutero era o trunfo para a crise política dos poderosos. Então, Carlos V abriu uma exceção, resolvendo ouvir o monge.
No dia 17 de abril, na hora marcada, Carlos V mandou dois oficiais imperiais buscarem Lutero no Johanniterhof, onde estava hospedado. Ele não seria imediatamente levado à grande Plenária da Dieta de Worms. O imperador reservara na agenda um encontro na própria sede do Bispado, onde estava instalada sua corte desde que começou a Dieta. Quem sabe, assustado com a grandiosidade de tudo aquilo, aquele monge fosse um sujeito fácil de convencer e as coisas se resolveriam numa boa conversa, digamos, mais “intimista”.
Ah, mas o imperador ou seus mais chegados conselheiros não tinham a menor noção de quem era aquele monge!
Quando chegou na hospedaria, o general Pappenheim já foi logo botando regras. O imperador queria ver Lutero em sua própria corte, mas não haveria discussão, nem qualquer debate ou oportunidade de argumentação. Seria tudo sem “mas, contudo, todavia, entretanto!”. Lutero só deveria responder as perguntas do oficial que presidia a sessão, Johann Eck (Lembro que Carlos V mal falava alemão e tudo passaria por um tradutor).
O que acontece a seguir é, numa concepção moderna de linguagem, literalmente um desastre comunicacional. Ao entrar na sala do trono, feitas as mesuras cabíveis ao imperador, Johann Eck apontou para uma mesa com 25 livros, cuidadosamente preparada para a ocasião. E tascou: “Foi você quem escreveu estes livros? Está pronto a refutar todas as heresias que estão escritas neles?”
Jeromee Schurff, professor de direito canônico da Universidade de Wittenberg, advogado de Lutero, pediu que os títulos das obras fossem lidos em voz alta. A lista continha: “As 95 Teses”, “Resoluções Sobre as 95 Teses”, “Sobre o Papado de Roma”, “Discurso à Nobreza Cristã”, “O Cativeiro Babilônico da Igreja”, “Sobre a Liberdade de um Cristão” e diversas outras obras.
Logo depois da leitura, Lutero foi novamente instado a responder. O acusado deve estritamente retirar as suas teses. Aquilo era muito surreal! Duvido que Carlos V tenha lido algum daqueles livros! Lutero titubeia e pede um tempo para refletir: “Para que eu possa responder corretamente às perguntas sem o risco de prejudicar minha espiritualidade”.
E o imperador, curto e grosso, faz um desdenhoso gesto para que o monge se retire da sala do trono e lhe concede mais 24 horas: “Compareça amanhã neste mesmo horário, com a devida resposta!”.
Amanhã conto mais.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

LUTERO EM WORMS – A CHEGADA (16.04.1521)


Hoje em dia, redes sociais lançam algumas pessoas do anonimato à fama num átimo. Influencers da noite para o dia, elas tornam-se nacionalmente conhecidas. Suas postagens são celebradas, viram memes e ocupam os trend topics. Junto com a fama vem o implacável julgamento da opinião pública.

Há 500 anos, não havia redes sociais. Mas já havia prensa. Com a impressão e a divulgação, as 95 Teses de Lutero se espalharam em velocidade de Whattsapp, causando furor. Da porta da igreja de Wittenberg, em 17 de outubro de 1517, para o mundo.

Pouco mais de quatro anos depois, Lutero virara um influencer de renome. Sua ousadia já havia chegado até a Roma, e o papa já reagira com vigor em outubro de 1520, com a bula “Exsurge Domine”, rebatendo 41 supostos erros das 95 teses.

Agora ele tinha que dar satisfações também ao Imperador. Numa quase condução coercitiva, Carlos V intimara Lutero e enviou até carruagem e escolta com salvo-conduto, para levar Lutero a Worms em segurança. A comitiva havia partido de Wittenberg em 2 de abril de 1521 e, ao longo de todo o trajeto de quase 600 Km e uma viagem de duas semanas, as manifestações de apreço e apoio a Lutero eram uma constante. Ele havia pregado com sucesso em Erfurt, Gotha e Eisenach.

No dia 16 de abril de 1521 eles chegaram a Worms. A condição de influenciador de Lutero ficou muito evidente. As pessoas se aglomeravam nas calçadas, corriam aos balcões e afastavam as cortinas das janelas para vê-lo e saudá-lo. Desejavam-lhe sorte e coragem para enfrentar o que o esperava. A população da cidade nem disfarçava. Para desgosto das autoridades, Lutero virara um ídolo. Foi efusivamente recebido por mais de duas mil pessoas! Um sucesso, para quem chegava a Worms por intimação da Dieta convocada pelo Imperador Carlos V. Não, dieta não é regime (risos); é assembleia (mais risos)!

A Assembleia Imperial estava reunida desde janeiro em Worms. O objetivo era tomar decisões para todo o Império. O imperador queria resolver logo a pauta germânica para voltar aos seus afazeres no maior império da Terra, à época – nem alemão ele falava direito. Mas, o pessoal reunido em Worms tumultuou a agenda da Dieta. Lutero, por exemplo, nem estava na lista. Mas todo mundo só falava nele, e os príncipes alemães queriam resolver as pendengas com Roma de uma vez por todas. Estavam de saco cheio do papa mandando nas suas coisas. Assim, Carlos V abriu uma brecha na agenda para resolver o problema Lutero.

Por causa dessa Dieta, mais de dez mil pessoas passaram por Worms. A cidade tinha pouco mais de sete mil habitantes. Entre esses visitantes estavam o imperador Carlos V e sua comitiva, 80 príncipes, 130 condes, diplomatas de reis estrangeiros, muitos nobres e todas as potestades e principados de Roma com suas comitivas de conselheiros, cavaleiros, escravos e serviçais.

Worms vivia em clima de convenção desde janeiro, e a normalidade havia abandonado a cidade. A hospedagem dessa multidão era desafio e oportunidade de negócio e espaço para a criminalidade. O fato de estarem em plena Quaresma não importava e o jejum... bem, que se danasse.

O mais detestado hóspede da cidade era o núncio papal Girolamo Aleandro. Todo mundo sabia o que ele veio fazer na Dieta, e a opinião pública pró-Lutero era implacável. Ciente disso, ele só andava na rua com seguranças. As gráficas haviam se encarregado de espalhar em Worms muitos folhetos sobre o reformador. O próprio Aleandro disse que todo dia parecia chover escritos de Lutero na cidade, em alemão e latim: “até parece que não se vende outra coisa por aqui além de escritos de Lutero”.

Ao chegar, Lutero hospedou-se no Johanniterhof, de 16 a 26 de abril de 1521, e teve que dividir o quarto com outros dois hóspedes. O local foi escolhido com cuidado. Conselheiros do príncipe da Saxônia estavam alojados lá, mas também o marechal Ulrich von Pappenheim, de modo que o desejo de ter Lutero sob controle estava ao menos em parte garantido.

No comando da Dieta estava Carlos V. Mas, quem imagina um circunspecto senhor de barbas grisalhas exercendo um poder majestático, engana-se. O imperador era um jovem de 19 anos! Quase um menino. O homem mais poderoso da Europa era um menino. Poderoso, mas seu poder dependia de muitos conselheiros; entre eles João Eck, assistente do príncipe-arcebispo de Tréveris e porta-voz do imperador no caso de Lutero; e o próprio Aleandro. Mas também de disputas com políticos experientes, como os príncipes alemães.

Ao chegar no dia 16, Lutero foi convocado a comparecer diante da assembleia no dia seguinte, às 16 horas. Seu advogado seria Jeromee Schurff, professor de direito canônico da Universidade de Wittenberg. Apesar da boa acolhida na cidade, é possível imaginar que aquela noite não seria exatamente uma noite de sono tranquilo. 


Continuo essa história amanhã.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

VIA DOLOROSA DE LUTERO - 1521-2021


Este sinuoso risco no mapa da Alemanha é muito importante. Há 500 anos, este foi o caminho do reformador Martim Lutero, de Worms para seu exílio, no castelo de Wartburg.

Ele foi reconstruído por historiadores e é hoje uma espécie de Caminho de Tiago de Compostella luterano; um caminho de peregrinação. Lutero o percorreu a pé, há 500 anos, no ano de 1521. O que lhe aconteceu em Worms você vai saber detalhadamente a partir de amanhã, dia em que ele chega à cidade. Se você acompanhar atentamente os passos de Lutero em Worms, JAMAIS vai se intitular "Herdeiro de Worms" ou vai dar ouvidos e qualquer pessoa que se designe assim.

Por enquanto, o caminho. No ano de 1988 eu vivi por um ano na região central deste caminho. Ele começa em Worms, na catedral. Aí segue para Osthofen, Oppenheim e cruza o rio Reno numa balsa. Passando por Trebur, passa por Mönchbruch e Neu-Isenburg. Passando pela floresta da cidade de Frankfurt ele chega a Frankfurt-Sachsenhausen, cruza o rio Meno e chega ao centro da cidade. Passando por Bornheim, segue por Bad Vilbel e segue para Friedberg.

Em seguida ele passa pela região da Wetterau e chega a Hungen, cidade que conheço como a palma da minha mão, pois moramos a cinco quilômetros de lá, na vila de Bellersheim. O caminho de Lutero segue para Grünberg, na região do Vogelsberg (elevação mais alta da região) contorna o monte e segue para Alsfeld, seguindo para Bad Hersfeld. A partir dali, o caminho atravessa a região de Fulda e o vale do Werra. Finalmente, cruzando a floresta de Thüringen, cruza a reserva natural Hohe Sonne em direção ao castelo de Wartburg, onde Lutero se exilou e traduziu o Novo Testamento.

Uma caminhada que se pode fazer hoje, cheia de momentos de meditação e cidades turísticas maravilhosamente preservadas. Para Lutero, um caminho repleto de riscos e perigo de morte. Conheça mais de perto essa história, que eu conto a partir de amanhã! Aguarde!

DEPOIS DE WORMS, A CAÇADA A LUTERO

No último dia da Dieta de Worms, 26 de maio de 1521, já sem a presença de Lutero, foi decretado o Édito de Worms. O documento fora redigido ...