Enquanto ocorre o Concílio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, de 20 a 24 de outubro, em Foz do Iguaçú, não dá para esquecer de um outro concílio, ocorrido na mesma data, em Curitiba, há 40 anos. Um clima pesado imperava, então. Não só pela angústia provocada pela realidade da ditadura no poder na época, mas pelo vexame da própria igreja luterana, que havia sido descartada como cede da assembléia da Federação Luterana Mundial e viu o evento ser realizado em Evian-França, o clima era pesado. Havia protesto, vergonha e vontade de resposta no ar, naqueles dias de 1970, em Curitiba. A seguir, eu conto a história do resultado que este clima daquele concílio gerou. As linhas a seguir foram publicadas no jornal O Caminho (
http://www.jornalocaminho.com.br/) e também estarão nas páginas da próxima edição da revista Novolhar (
http://www.novolhar.com.br/). É um resgate histórico oportuno e necessário. Boa leitura.
A porta da sala da Presidência da República em Brasília se abria, na manhã do dia 6 de novembro de 1970, para os pastores Karl Gottschald, presidente da IECLB, Augusto Kunert, regional da RE IV, e Ernesto Schlieper, pároco da comunidade luterana de Brasília. Os três tinham uma missão difícil, que exigia um alto grau de coragem e amor ao evangelho. Estavam prestes a ter uma audiência com o presidente Emílio Garrastazu Médici, para entregar-lhe um documento.
Este documento completa 40 anos. Entrou para a história como o “Manifesto de Curitiba”. Havia sido aprovado pelos conciliares do VII Concílio Geral da IECLB, na plenária do dia 24 de outubro de 1970, na capital paranaense. Com a ousadia, a igreja luterana entrava para o seleto grupo das instituições não coniventes com a ditadura instalada no Brasil em 1964 e com a tortura e o desprezo aos direitos humanos.
O documento também era uma reação tardia a um fato que havia frustrado profundamente a cúpula da IECLB. Por causa da situação política no Brasil, a Federação Luterana Mundial (FLM) havia cancelado a realização da sua assembléia mundial em Porto Alegre, marcada para 14 a 24 de julho de 1970.
Dois meses antes, mesmo com quase tudo pronto, os parceiros luteranos europeus alegaram “falta de segurança” para realizar a assembléia no Brasil, transferindo-a para Evian, na França. Se isto realmente era assim e atemorizava até mesmo os europeus, a IECLB não podia continuar calada diante do que a ditadura fazia no país.
Mas não se espere um documento contundente, que vai direto ao ponto e expressa com clareza a que veio. Antes, é um texto cuidadoso, que hoje facilmente seria classificado como morno. “O texto era irênico”, defende o Dr. Lindolfo Weingärtner, aportuguesando o termo “eirene”, que significa “paz” em grego. "Mas não apaziguador, no sentido de condescendente, e sim no jeito que os cristãos têm de falar entre si sobre questões difíceis", ele esclarece.
Na época, Weingärtner era reitor da Faculdade de Teologia em São Leopoldo e coordenador da Comissão Teológica da IECLB. “Eu elaborei um texto-base, que discutimos na comissão teológica e oferecemos à Direção da Igreja para ser publicado ou encaminhado ao governo, de alguma maneira”, relembra. A direção da IECLB levou o texto ao Concílio, dando início ao processo que terminou no Gabinete da Presidência, naquele nervoso dia 6 de novembro, em Brasília.
Considerando a mão que conduziu a pena, o texto de três páginas datilografadas era recheado de sólidos argumentos teológicos acerca das relações entre Igreja e Estado. Como portadora da mensagem de Deus, a Igreja não pode se esquivar de testemunhar sem desobedecer ao seu Senhor, defendia o texto. Sua mensagem “é dirigida ao homem todo, não só à sua alma”. Por isso, “terá consequências e implicações em toda a esfera da sua vivência – inclusive física, cultural, social, econômica e política”.
Reivindicando para a Igreja o papel de “consciência da Nação”, o documento justifica sua crítica aos rumos do governo, “não de fiscal, mas antes de vigia”.
O faz com extremo cuidado. “A Igreja, em tais casos, não procurará contestar o poder do Estado, como se ela fosse um partido político, mas proclamará o poder de Cristo. Onde ela se sentir compelida a contrariar medidas governamentais, antes de tomar qualquer atitude pública, procurará dialogar com as autoridades respectivas”, procurando sempre agir “sem intuitos demagógicos”.
“Conta-se que Médici não se mostrou muito impressionado com esta argumentação teológica”, diz o pastor Meinrad Piske, que também participou da entrevista com Weingärtner. Mas ele anuiu ao ser lido o trecho que deixava claro que “o culto terá consequências políticas, por despertar responsabilidade política, mas não deverá ser usado como meio para favorecer correntes políticas determinadas”. Entusiasmou-se ao ouvir “A pátria será honrada e amada; seus símbolos serão respeitados e usados com orgulho cívico, no sentido mais legítimo, mas o cristão não poderá falar da pátria em categorias divinizadoras”.
Mas o semblante do presidente foi se fechando quando o manifesto passou a discorrer sobre os direitos humanos. O texto fala de “notícias alarmantes sobre práticas desumanas que estariam ocorrendo em nosso País”. Não acusa. Apenas constata que essas notícias corriam por aí.
O Manifesto de Curitiba não se intimida ao chegar, finalmente, ao ponto: “Entendemos mesmo, como Igreja, que nem situações excepcionais podem justificar práticas que violam os direitos humanos”. E é por esta determinação e ousadia profética que o Manifesto deve permanecer na história como um dos mais corajosos documentos já publicados pela IECLB.
Ele foi divulgado somente depois das eleições de 15 de novembro, num acordo com a Presidência, para evitar seu uso para fins eleitorais. “As lideranças da Igreja ficaram impressionadas ao ler o texto no jornal O Estado de São Paulo, que publicou o Manifesto na íntegra”, lembra o pastor Piske. “Este jornal vivia cheio de poesias e colunas pretas no lugar dos textos que haviam sido cortados pela censura”, completa.
O Manifesto de Curitiba, quarenta anos depois dessa ousadia luterana, continua sendo um marco. Num momento de euforia ideológica do Estado, que se agigantava em atitudes e leis anti-democráticas e repressoras, ele propõe reflexão sobre os princípios éticos em jogo e defende os direitos humanos.
Ao mesmo tempo, a IECLB oficializa, com aquele documento, o seu “inteiro apoio a quem se acha seriamente empenhado em coibir abusos cometidos e em oferecer ao mais humilde dos brasileiros – inclusive ao politicamente discordante – a absoluta certeza de que será tratado segundo as normas da mesma lei com a qual possa ter entrado em conflito”.
Leia o manifesto na íntegra, digitando “Manifesto de Curitiba” na ferramenta de busca do portal da IECLB:
http://www.luteranos.com.br/.