Nem um mosquito ensebado conseguiria se infiltrar nas
matérias sobre os índios guarani publicadas nesta semana noDiário
Catarinense (DC). A expressão é usada, pelo menos no Amazonas, para
designar algo fechado, impenetrável, difícil de entrar, seja a bola no gol, uma
ideia na cabeça ou um "mosquito ensebado" numa fortaleza
inexpugnável. É o caso do jornal do grupo RBS de Comunicação, que está
absolutamente fechado a qualquer informação fornecida pelos índios. Durante
cinco dias, publicou 20 páginas sobre os guarani e cometeu a façanha de não
ouvir nenhum dos envolvidos. Sequer uma linha, uma palavra, uma vírgula
guarani.
Editado
em Florianópolis há mais de 28 anos, o Diário já tem idade
para criar vergonha na página. Não criou. As matérias assinadas por Joice
Barcelo e Ivan Rodrigues, sob o título "Terra Contestada",
publicadas entre os dias 07 a 11 de agosto, ocuparam caderno com 20 páginas
para desqualificar os índios guarani, atacar a demarcação da Terra Indígena
Morro dos Cavalos, localizada no município de Palhoça (SC), e agredir os
antropólogos que não rezam pela cartilha do agronegócio.
Quem achava que não existia discurso mais nojento sobre os
índios do que o da revista Veja se equivocou. O Diário
Catarinense caprichou. Requentou as fantasias da Veja e
desinformou seu leitor, jurando que os guarani que vivem no Brasil são
estrangeiros, vieram do Paraguai, são falsos índios, manipulados por
organizações não governamentais e por antropólogos inescrupulosos, que criaram
uma "fábrica de aldeias".
O Diário Catarinense jogou na lata do lixo
documentos históricos, mapas, livros e a memória oral para afirmar que os
guarani não habitam tradicionalmente a TI Morro dos Cavalos e agora estão
atrapalhando a duplicação da BR-101. O jornal faz tais afirmações
estapafúrdias, buscando apoiar-se em autoridades como o Tribunal de Contas da
União (TCU), que questionou a ocupação tradicional da área, além de um
antropólogo de araque que desconhece os guarani, ambos possuidores da mesma
legitimidade e dos mesmos conhecimentos técnicos de um ciclista para pilotar um
avião.
O OUTRO LADO – A
parcialidade do jornal fica patente quando despreza estudos, laudos e pareceres
técnicos realizados por quem tem competência e legitimidade para isso, e se
esconde detrás de autoridades de duvidoso e interesseiro saber.
Aqueles que defendem os direitos dos índios são atacados
pelo jornal. Foi o que aconteceu com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e a
antropóloga Maria Inês Ladeira, cujo "crime" foi ter coordenado o
grupo técnico responsável pelos estudos de identificação e delimitação da Terra
Indígena Morro dos Cavalos. Para desqualificar a antropóloga, reconhecida
pesquisadora da cultura guarani, autora de livros e artigos usados em muitas
universidades, o Diário usa suposto laudo de um tal Edward
Luz, que nunca publicou uma palavra sobre esses índios.
Uma nota oficial aprovada no XV Encontro Estadual de
Historia de Santa Catarina, realizado entre 11 e 14 de agosto, manifestou sua
indignação e tocou na ferida quando ressaltou que "a reportagem veiculou a
entrevista de um único Guarani, que há algum tempo já não reside mais na
Comunidade e cujos argumentos e posição não são sustentados por qualquer outro
guarani. Os sujeitos envolvidos e atacados pela reportagem, sequer foram
ouvidos, lideranças (caciques, professores, anciões), famílias Guarani que residem
na comunidade Itaty do Morro dos Cavalos" - diz a nota.
O Conselho Indigenista Missionário-Regional Sul também
tornou pública uma nota em que manifesta "repúdio às matérias publicadas
pelo jornal Diário Catarinense, que externa sua visão
desqualificada e anti-indígena contra os Guarani, demonstrando uma profunda
falta de conhecimento a respeito da realidade indígena". Informa que os
Guarani já se manifestaram várias vezes, desde 2001, de que não se opõem à
construção dos túneis da BR-101, contradizendo a reportagem.
Com relação às fontes do jornal, o CIMI estranha "como
um jornal pode dar destaque para um antropólogo, no caso Edward Luz, que foi
expulso da ABA por falta de ética profissional, não conhece os Guarani e é
contratado pelo agronegócio para produzir contra laudos. Pelo nível de
agressividade e intolerância nos perguntamos: Que interesse tem por trás de uma
matéria? Quem pagou por essas matérias? Quem pagou pela arte do site do
jornal?".
CARTA PARA DILMA – Uma manifestação foi convocada para quarta-feira,
às 10 horas, no centro de Florianópolis, enquanto os guarani encaminharam uma
carta para a presidenta Dilma cobrando a homologação da Terra Indígena Morro
dos Cavalos.
Eis a íntegra do documento:
Excelentíssima Presidenta da República, Dilma Rousseff
Nós povos indígenas guarani, em nome de nossos irmãos, pais,
filhos e toda ancestralidade que veem por nós, solicitamos a Vossa Excelência a
imediata homologação de nossa Terra indígena do Morro dos Cavalos, município de
Palhoça, em Santa Catarina. Esperamos já há 20 anos enfrentando todas as
dificuldades e etapas para chegarmos até aqui onde estamos.
Durante os últimos anos, pela demora do processo demarcatório, algumas pessoas
que moram por perto em nome de interesses particulares, tem organizado um forte
movimento político para impedir que a gente seja reconhecido, juntamente com
algum meio de comunicação, dizendo que nunca existiram indígenas aqui e
inventam muitas outra mentiras sobre nossa originalidade. Somos caluniados,
difamados, ameaçados e sofremos muitas pressões psicológicas da sociedade
Palhocense. Também temos sido alvos de racismo preconceito e discriminação por
parte do Estado.
Estamos esperando com muita paciência pelo dia que em
poderemos viver nossas vidas com dignidade. Aprendemos a ler e escrever
na língua da Senhora para que chegasse logo este momento.
Portanto, estamos diante da Sra neste tempo, na esperança da
homologação imediata de nossa terra, de reparar um grande erro histórico.
Homologue nossa terra, nosso futuro, nossa história. Seremos eternamente
gratos, por dividirmos este tempo, este lugar com a Sra. presidenta da
república: Dilma Roussef.
Atenciosamente
Comunidade indígena guarani da Terra Indígena Morro dos Cavalos.
A questão é que o discurso dos índios, dos antropólogos, dos
historiadores e dos indigenistas, cujas pesquisas trazem dados novos sobre a
realidade indígena, contradizem a narrativa sobre o Brasil, que já foi
cristalizada e naturalizada. Nem um mosquito ensebado consegue nela penetrar
como demonstra o Diário Catarinense.
Os guarani com quem convivo são elegantes, discretos,
refinados, educados, incapazes de uma grosseria. No entanto, eles tem
alguns amigos, como eu, que não hesitam em usar uma palavra feia para designar
uma coisa feia. Por isso, peço a eles que fechem os ouvidos para o que vou aqui
escrever: a matéria do Diário Catarinense, por praticar o
anti-jornalismo, por ser preconceituosa e desinformativa, foi escrota, muito
escrota. Não tenho outra palavra para classificá-la.
(José Ribamar Bessa Freire, 17/08/2014 - Diário do Amazonas)