Em um dia qualquer de setembro, cerca de dois séculos atrás ou pouco menos, surgia uma insólita nação. Registra a história oficial que um grito forjou o tal país. Foi assim...
Um príncipe infante, deixado para trás por uma família real suja e desmanzelada, de uma corte hilária e insignificante, devia reger um potentado que, à semelhança de um filhote de elefante, mal sabia o tamanho do próprio corpanzil. O menino-príncipe-regente fazia as vezes de mandatário de 22 capitanias hereditárias precariamente aglutinadas em torno de um inchado e voraz formigueiro real, onde se fingia reinar sobre um reino de gambiarras.
Em busca de conhecer o projeto de país que herdara da corte familiar fujona, que o deixara na penúria ao limpar os cofres do banco real, o príncipe de barba cheia em franco desenvolvimento montou em lombo de mula para conhecer a sua herança. Entre insetos e serpentes, onças, pacas, antas e capivaras, sendo observado por bandos de monos do alto de florestas impenetráveis, nosso amado primeiro herói fabricado, ainda menino, tornara-se desbravador do próprio chão.
Enquanto esfregava suas jovens partes baixas no lombo da mula que na história virou garanhão napoleônico, não lhe ardia somente o tesão juvenil da explosão hormonal que acompanha todos os jovens de 22 anos, mas lhe devassava uma monumental disenteria.
A viagem de exploração do reino virou uma trilha de desespero intestinal. O adolescente-príncipe-regente sentia-se um farrapo humano com cheiro de bosta em meio a um futuro país que sequer lembrava vagamente a corte que deixara para trás, onde os escravos negros tinham fios brancos nas costas dos pingos da bosta do castelo em que ele havia se tornado um quase-homem ainda ontem. Ali, em meio ao inóspito tudo, até isso era com ele: realizar seu próprio saneamento básico.
De moita em moita, apelando para folhas mas mantendo distância segura de urtigas, uma folha de papel com timbre real viria bem. E ela veio pelas mãos de um fatigado e esfaimado mensageiro. O rei-pai-sujo-obeso-fujão ordenara submissão ao jovem imperador tornante.
Com a garganta seca e a saída em brasa, o príncipe enfureceu-se com a inesperada mensagem que, embora não registrado em imagens ou livros de história, deve ter acabado numa parte do príncipe a derreter.
Indignado, ele foi no grito. Uivando de ódio e de cólicas, mandou o pai e sua corte ao lugar que estava bem abaixo dele e que há pouco fazia parte de suas dores. O grito do príncipe entrou para os anais como "Grito do Ipiranga".
Surgia, ali mesmo, o país do grito. Desde então, tudo nesse país é feito no grito, resolvido no grito, abafado no grito ou mesmo prendendo o grito. Grita-se por tudo e para todos. Diálogo é grito, educação é grito, escola é grito, governo é grito, oposição é grito, protesto é grito, justiça é grito. No país que surgiu às margens do Ipiranga, cujas margens ecoaram o grito de ódio do futuro imperador, foi criada a gritocracia. E este é o modus operandi da política nacional desde então. O grito fundante, das margens do Ipiranga, continua a ecoar no Legislativo, no Executivo e até no Judiciário.
Me perdoe Pedro Américo e seu descarado plágio mentiroso das origens do país do grito às margens do Ipiranga. Seu quadro napoleônico não representa o que nos tornamos. Dragões da independência em animais de raça ao redor de um arrebatador príncipe destemido, erguendo as espadas num prenúncio de Star-Wars tupiniquim? A mentira é o berço do país do grito. Uma trupe esfarrapada seguindo um adolescente em estado de cólera e torturado pelas picadas dos insetos, todos montados em mulas e odiando cada parada seguida de um insuportável fedor... É daí que nascia o país do grito. Seguimos gritando. Quem mais pode, quem mais tem peito. Enquanto gritamos, todos estão surdos... Por isso, o quadro que melhor representaria nossas origens é o de Edvard Munch.