Muitos não entendem que, quando falamos de justiça de gênero, estamos buscando valorizar a mulher. Neste mês de novembro, em que são comemorados os 150 anos do nascimento de Marie Curie, nada mais justo do que voltar a este tema. Mesmo porque, como primeiro destaque mundial da mulher no machista segmento da ciência humana, Marie Curie passou por experiências muito parecidas com as que Judith Buthler teve que enfrentar no Brasil cem anos depois (imagina, neste quesito estamos um século atrasados, que tristeza!).
Vamos primeiro saber quem foi Marie Curie (1867-1934). Ela foi uma verdadeira heroína feminina num mundo majoritariamente dominado pelos homens. Ela foi a primeira doutora em Ciências Naturais, a primeira professora mulher em Sorbonne, a primeira cientista mulher a ganhar o Nobel de Física, e também a primeira pessoa humana a ganhar um segundo Nobel em Química, bem como a primeira integrante mulher da “Académie de Medicine” parisiense. Foi a primeira mulher a candidatar-se à “Acedémie des Ciences” em 1911, mas perdeu. Somente no ano de 1979 a física Yvonne Choquet-Bruhat conquistou a primeira cadeira para uma mulher nesta academia.
Suas pesquisas pioneiras não foram fruto de um trabalho nos melhores laboratórios da França. Junto com seu marido, Pierre Curie, ela pesquisava no quintal de casa, numa mistura de rancho com depósito de batatinhas.
Polonesa de Varsóvia e filha do professor Wladislaw Sklodowski, ela já cresceu num meio intelectual. Foi estudar medicina na Sorbonne, em Paris. Após casar com Pierre, os dois se meteram no laboratório. Sua descoberta, os elementos Rádio e Polônio e, com eles, as emanações desses elementos, que decidiram chamar de “Radioatividade”. A partir de suas descobertas, desenvolveram os aparelhos de Raio-X e o tratamento de Radioterapia para o tratamento do câncer, um método utilizado amplamente até os nossos dias.
Já durante a 1ª guerra mundial ela e sua filha Irène, também cientista, desenvolveram aparelhos de Raio-X que podiam ser usados nas enfermarias da frente de batalha para tratar soldados, auxiliando mais de um milhão de feridos. As duas desenvolveram os chamados “petites Curies”, unidades móveis de Raio-X, que a própria Marie conduzia ao front de guerra em caminhões, que ela se habilitou a dirigir fazendo carteira de motorista.
Sua experiência nesse périplo pelos locais mais dramáticos da guerra a transformou numa pacifista: “Para odiar até mesmo o pensamento de uma guerra, é suficiente passar uma vez pelos locais por onde eu passei incontáveis vezes, durante todos esses anos: homens e meninos que eram trazidos à ambulância do campo de batalha numa mistura de sangue e sujeira”.
Em meio à sua luta por paz e pela ciência, ela foi transformada em heroína da luta feminista, como a primeira mulher a lutar pelos direitos das mulheres, especialmente num mundo machista da ciência e da guerra. Incontáveis filmes mostram a trajetória da contagiante personalidade de Marie Curie.
A mulher que hoje é vista como uma heroína inconteste, entretanto, incomodou muita gente em vida, especialmente numa França que vivia em plena Belle Époque, em que a mulher tinha um papel ideal a desempenhar, como “rainha do lar” e coisas do gênero (não DE gênero!).
A escritora Marie Louise Regnier, por exemplo, desceu a ripa na candidatura de Marie Curie à academia francesa de Ciências em 1911: “Não se deve tentar colocar a mulher no mesmo nível do homem. ‘Ser igual ao homem’. Essas palavras por si só são terríveis! Destroem tudo o que tem a ver com charme, beleza, fantasia...”. Imagina! Nada parecido com os mesmos argumentos que ainda hoje, em pleno século 21, se ouvem às pencas por aí, não é mesmo? Não avançamos muito, na verdade...
Mas Marie passa por uma experiência ainda pior. Em um mundo de homens, não faltaram os que se aproveitavam de sua condição de mulher e acabou que ela se envolveu num romance extraconjugal com Paul Langevin, um homem casado e pai de quatro filhos. Detalhe: ela era viúva de Pierre e mãe de duas moças. Ele havia sido atropelado por uma carroça em 1906.
Quando o romance veio à tona, uma guerra foi declarada, especialmente contra Marie Curie. Jornais conservadores de direita iniciaram uma campanha de difamação contra a heroína polonesa que dedicou sua vida à França. Enquanto Paul retorna aos braços da esposa, Marie é tratada como destruidora de lares e endemoninhada pela imprensa parisiense.
Uma turba em frente à sua casa exige que a “estrangeira” e a “ladra de maridos” desça à rua e seja humilhada. A heroína incomodava e devia ser punida, é o que exigia a multidão diante da casa de Marie Curie na manhã do dia 23 de novembro de 1911. As pedras logo estilhaçam as vidraças da casa e os amigos de Marie a escondem para protege-la. “Lapidada” e “branca como uma estátua”, assim testemunhas oculares descreveram a cientista após o episódio de agressão.
Os defensores da moral e dos bons costumes atacaram impiedosamente a “estrangeira” de origem polonesa e “judia”, que só se interessa por “livros, laboratórios e fama”, e que destruiu com frieza de coração um honrado lar francês. A sua história virou pretexto para a pregação antissemita em Paris.
Lembra o triste episódio com Judith Buthler na semana passada no aeroporto de Congonhas...
(Com informações de Katja Iken em Spiegel/Eines Tages)
Nenhum comentário:
Postar um comentário