quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Lutero e Marx

Você deve pensar que enlouqueci de vez. Como um pastor pode fazer uma comparação entre Martim Lutero e Karl Marx? Mesmo espantado, recolha o seu espanto e acompanhe o meu raciocínio. O texto é longo, eu sei, mas “ouse ler”, como diz o meu amigo Renato.
Bem, vamos aos detalhes. Não penso nos escritos, nas frases bombásticas ou no sucesso do professor de Wittenberg em sua terra, onde tinha a proteção de muitos príncipes e, mesmo tendo sido excomungado, levava uma vida relativamente normal, se é que se pode dizer isso da experiência alucinante que foi a existência de Lutero.
Penso no que pensavam seus inimigos. Para isso, baseio-me na jovem filósofa italiana Marta Quartale, que está trabalhando em sua tese de doutorado em filosofia na universidade de Berlim.
Em Roma, o ex-monge e professor de Wittenberg era o próprio demônio. Naqueles tempos em território italiano, graças ao renascimento da Inquisição no verão de 1542, qualquer simpatia à Reforma sumiu completamente do mapa em 70 anos.
Foi uma perseguição implacável. Alguns simpatizantes fugiram para a Suíça ou a Polônia. Quem ousasse expressar-se simpático às ideias protestantes, era sumariamente condenado por heresia e executado. Bartolomeo Fonzio, por exemplo, foi executado por ter traduzido o escrito de Lutero “À Nobreza Cristã da Nação Alemã...”.
Lutero era o próprio anticristo em Roma. Dezenas de representações italianas do século 16 mostram o professor de Wittenberg como diabo, bebum, ser com sete cabeças ou chifres e muitas ilustrações depreciativas. Por lá ele era o “monstro saxão”. Mas, o conhecimento sobre o pensamento da Reforma ou a leitura de seus escritos era uma prática amplamente desprezada.
Falava-se da pessoa de Lutero. Seus escritos, sua crítica à igreja ou o que era o movimento que ele encabeçava era algo amplamente desconhecido. As reações à Reforma eram amplamente movidas por atitudes impensadas e inconsequentes. Era um ódio gratuito e desinformado. Eles não tinham nenhuma noção sobre os seus escritos teológicos ou sobre a pessoa de Lutero.
Em 1520 alguns mercadores alemães começaram a levar a sua fé para a cidade de Veneza. Mas tudo às escondidas. Celebravam cultos, mas não podiam falar alto ou cantar. O pastor usava trajes civis, para não chamar atenção. Ao longo de 130 anos a pequena comunidade luterana de Veneza foi uma igreja de porões. Hoje essa comunidade não é somente a mais antiga na Itália, senão também a mais antiga fora da Alemanha.
Quando começaram a surgir traduções da Bíblia para o italiano (1567), até a Bíblia entrou no Index Librorum Prohibitorum, ou seja, sua leitura foi oficialmente proibida na Itália. O tradutor e teólogo italiano Giovanni Diodati só conseguiu publicar sua tradução italiana das Escrituras em 1603 porque fugiu da Inquisição e se escondeu em Genebra-Suíça.
Assim, não pude resistir. Hoje em dia, quando se menciona o nome de Karl Marx, os estereótipos logo aparecem. Sem conhecer a sua filosofia ou qualquer dos seus escritos, o mais importante filósofo alemão é logo desqualificado por conta de rótulos. Também ele não escapa de ser taxado de anticristo, monstro ou mesmo o diabo em pessoa. Alguns cristãos inclusive montaram uma espécie de Inquisição particular. Condenam qualquer referência ao comunismo como heresia. Excomungam a torto e a direito. Queimam livros em praça pública, usando O Capital como principal combustível – embora jamais o tivessem sequer aberto, ou ao menos lido o seu Prefácio.
As semelhanças entre Marx e Lutero não são mera coincidência, portanto.

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