quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Dinheiro de plástico e Big Brother

O cartão de crédito completa 50 anos. Seus inventores patentearam sua invenção no dia 13 de setembro de 1968 na Alemanha. Jürgen Dethloff e Helmut Gröttrup criaram um arquivo eletrônico de dados que pudesse ser colocado num cartão de plástico e o denominaram “Identificador com Circuito Integrado”. Nascia assim o cartão com chip. O zeloso escritório de patentes alemão apenas registrou o invento em 1º de abril de 1982, sob o número DE1945777C3.
Poucas décadas depois, todo o sistema bancário e de compras funciona majoritariamente com cartões de plástico. O risco, que milhões já experimentaram, é a facilidade de seu uso. São emblemáticas as reportagens de cidadãos americanos que vivem nas ruas das grandes cidades, moram dentro do seu carro (que é tudo que lhes sobrou) e têm uma fila de dezenas de cartões de crédito, que já foram o seu prazer, se tornaram o seu vício e viraram a sua bancarrota. Nada mais apropriado que usar aqui uma velha máxima do mundo das bebidas alcoólicas: “Cartão de crédito: use com moderação!”
Entretanto, para muito além de transações bancárias, o chip num cartão de plástico universalizou-se como forma rápida e descomplicada de identificação. Porém também aqui se esconde o risco de confirmar a velha teoria conspiratória de James Orvell sobre o tal do Big Brother. Ele existe. E tem formato de chip. Para aparecer uma ditadura com controle total sobre cada passo de cada cidadão deste minúsculo planeta é só uma questão de política. A tecnologia, afinal, já tem meio século.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

70 anos do CMI

No dia 23 de agosto de 1948 o Conselho Mundial de Igrejas-CMI era oficialmente chamado à vida. Era o coroamento de esforços que vinham sendo feitos desde o começo do século 20 no sentido de unir as igrejas em torno de alguns objetivos comuns. Chegar a este ponto não foi nada fácil.
Uma longa história de divisões entre os cristãos foi sendo caprichosamente construída desde aquele primeiro grupo de seguidores de Jesus, que já digladiavam entre si as divisões do judaísmo. Continuou com os apóstolos, cujo primeiro concílio da igreja primitiva em Jerusalém, no ano de 70d.C., foi convocado para resolver pendengas entre os cristãos de origem judaica e os gentílico-cristãos em torno da manutenção da circuncisão.
Desentendimentos, diferenças de interpretação e lutas por poder levaram ao primeiro grande cisma da igreja em 1054, que dividiu a cristandade em igreja oriental (com sede em Constantinopla) e igreja ocidental (com sede em Roma).
O movimento da Reforma levou ao segundo grande cisma em 1520, dividindo a igreja ocidental mais uma vez, entre católicos romanos e os protestantes da Reforma.
Em seguida, os próprios protestantes foram se dividindo como num mosaico. Pendengas e picuinhas crescentes só causaram dor, sofrimento, perseguições, guerras e muitas condenações mútuas, sem contar a velha e inaceitável prática da pescaria em aquário alheio.
Entre as principais correntes de pensamento dentro e fora da igreja que começaram a questionar este estado de coisas destacaram-se os humanistas, os iluministas e os pietistas. Para os humanistas, uma reaproximação mínima poderia ser alcançada através de um CONSENSUS QUINQUESECULARIS, que propunha à volta aos acordos mínimos dos primeiros cinco séculos da cristandade. Os iluministas, a partir do racionalismo e do liberalismo do século 18, dá espaço crescente à ideia da liberdade religiosa. Frederico da Prússia, por exemplo, defendia que “cada um se torne salvo segundo a sua escolha”.
Destaque especial nesse movimento deve ser dado ao movimento pietista, que é a base sobre a qual se ergueu o ecumenismo moderno. Eles defendiam a ideia de que a fé é fruto de um novo nascimento (conversão), não da filiação a uma denominação (igreja). Fé não se herda. A partir desta visão, Zinzendorf criou a BRANCH-THEORY (Teoria dos Ramos), afirmando que a igreja Una, Santa e Apostólica é integrada pelos vários ramos em que se divide, ou seja, todos são como ramos da mesma árvore.
Inspirados por essas ideias, a juventude cristã pietista começou a articular encontros entre as igrejas oriundas da Reforma. A Associação Cristã de Moços e a União de Estudantes Cristãos articularam as primeiras Conferências Internacionais de Missão a partir de 1870, que culminaram na grande conferência de 1910 em Edimburgo-Escócia.
Foi em Edimburgo que se iniciaram as tratativas que levaram à proposta de uma assembleia constituinte de um Conselho Mundial de Igrejas. Esta assembleia estava marcada para 1941, mas não aconteceu por causa da segunda guerra mundial. A guerra e suas terríveis consequências esfriaram os ânimos até 1948.
Assim, a assembleia constituinte do CMI ocorreu apenas em 1948 em Amsterdã-Holanda. Foi neste encontro que 351 delegados de 147 igrejas constituíram o CMI oficialmente no dia 23 de agosto de 1948. Em sua definição, o CMI se auto define como “Uma comunhão de igrejas que confessam o Senhor Jesus Cristo, segundo as Escrituras, como Deus e Salvador e procuram juntas cumprir o chamado a que são vocacionadas, para a glória de Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo”.
Hoje o CMI reúne 348 igrejas do mundo todo (protestantes, anglicanos, ortodoxos, católicos antigos e igrejas livres, num total de 560 milhões de pessoas cristãs. A sede da entidade é em Genebra-Suíça, no Centro Ecumênico de Bossey (que abriga também a Federação Luterana Mundial). Por que Genebra? Porque é bom para a entidade diplomática das igrejas estar na capital diplomática da Europa.
A Igreja Católica Romana não é filiada ao CMI, mas tem estreita parceria em diversas áreas desde os anos 1960, através do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos. O principal argumento para não efetivar uma filiação está no tamanho da ICAR, que congrega 1,4 bilhão de cristãos no mundo (ou seja, o CMI é pequeno para acomodar uma igreja deste tamanho). Assim, trabalhar em parceria tem se mostrado bem melhor.
Não é possível imaginar o atual estágio mundial do ecumenismo sem o duro trabalho do Conselho Mundial de Igrejas. Entre idas e vindas, os ganhos foram muito ricos, apesar do constante movimento iô-iô. Sua maior marca é o DIÁLOGO. Esta é a conditio sine qua non do ecumenismo. Não há alternativa ao diálogo. Ele é o único caminho. Foi em volta da mesa de negociações que aconteceram reconciliação, acordos bilaterais importantes e projetos comuns das igrejas.
Uma de suas marcas mais visíveis é a celebração conjunta, onde as diferentes igrejas se encontram para ouvir a palavra de Deus em conjunto e refletir, permitindo a ação do Espírito Santo para a construção da unidade visível da Igreja de Jesus Cristo. E foi no encontro, no olho no olho, que se estabeleceram metas comuns como a PAZ, a JUSTIÇA, e a INTEGRIDADE DA CRIAÇÃO.
No dia de hoje, 70 anos depois, apesar dos percalços, cabe-nos ser gratos e gratas a Deus pela existência do Conselho Mundial de Igrejas e interceder para que sua trajetória rumo à unidade não seja interrompida, mas fortalecida. Obrigado a todos e todas que se engajaram e se engajam nesta grande causa do Ecumenismo. O CMI é a prova viva de que o que nos separa não são doutrinas ou nuances confessionais. A principal causa da divisão é o PRECONCEITO.
(A imagem mostra o ato de fundação do CMI em 23.08.1948)

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

“UM MAR DE SANGUE FOI O RESULTADO”

Texto da jornalista Lena Ohm
Tradução de Clovis Horst Lindner

Na infância em Essen, Harold Lewin presencia a ascensão do Nacional-socialismo e do antissemitismo. Após a “Noite dos Cristais”, ele foge com a família para a Holanda e passa a integrar a resistência – até ser preso pelos nazistas e deportado para o campo de concentração de Buchenwald. Esta é a sua história.

Seu coração chega a doer dos batimentos contra o peito. Dói mais a cada passo. Cada lufada angustiada de ar queima o peito e as fisgadas laterais são quase insuportáveis. Mesmo assim, Harold Lewin continua correndo. Segue sempre em frente. Dobra à direita, dobra à esquerda, atravessa uma pequena ponte. Nada mais que continuar a correr. Seguir em frente pelos becos estreitos do bairro das putas de Amsterdã. Atrás de si, ouve os ferozes latidos dos cães pastores, que perseguem seus calcanhares. Os latidos dos cães e os passos rápidos dos homens são as únicas coisas que Lewin ouve. Abafa todos os outros ruídos– concentra-se tão somente nos passos e latidos em seu encalço. Ele sabe bem: quanto mais altos ficarem, mais tem que correr. Os passos e latidos são entrecortados por ríspidas ordens dos alemães da SS aos seus subordinados. Então ecoa um tiro de dentro do cano da arma de um dos alemães. Lewin, num reflexo, encolhe a cabeça e a protege com os braços. Por um fio de cabelo a bala não atinge o alvo. As pernas de Lewin estão pesadas como chumbo e ele sente como as forças o abandonam lentamente. Somente a vontade ainda persiste – a vontade de viver. Ele não quer morrer. E por isso ele corre; tão rápido quanto suas cansadas pernas ainda conseguem carregá-lo. Repentinamente, ele sente uma mão em seu ombro. Puxa-o para o lado com força, de modo que ele tropeça.

Lewin trava, abre a boca num átimo e a fecha novamente, sem que tenha saído um único tom. Procura pelas palavras corretas para descrever o que aconteceu em seguida. Pisca algumas vezes e, inquieto, gira algumas vezes nas mãos a sua desgastada bengala. O atrito suave da bengala contra o piso é o único ruído que se ouve na nave da sinagoga de Recklinghausen. Fecha os olhos brevemente, respira fundo e murmura baixinho, como para si mesmo: “Eles já tinham a minha foto e já sabiam quem eu era. Eu, de fato, não tinha mais nenhuma saída. São todas ruas estreitas, com pontes estreitas e muitos canais – eu não encontrava mais saída. Mas você não vai entender isso sem conhecer toda a história”. Harold Lewin levanta a cabeça lentamente, ergue o canto da boca num sorriso e desata a falar.

No dia 30 de outubro de 1925 Harold Lewin nasce em Essen como o terceiro de cinco filhos. O pai era dono de uma pequena loja e a mãe cuidava da casa e da família. A família Lewin era bem vista na cidade, os vizinhos os cumprimentam na rua e gostavam de bater um papo descontraído com eles de vez em quando. A única diferença entre eles e os vizinhos era a religião – já que os Lewin são judeus. “Eu ia a uma escola judaica, mas à tarde eu brincava com os meninos da minha vizinhança”, Harold Lewin recorda a infância livre de dificuldades.

O nacional-socialismo e antissemitismo emergentes afetavam pouco a sua vida. Ele até olhava o novo “Stürmer(Semanário nazista publicado entre 1923 e 1945 como parte significativa da máquina de propaganda nazista que era fortemente antissemita. Nota do tradutor.) com as outras crianças – a representação dos judeus com pernas tortas e nariz adunco nem o incomodava. “Eu era curioso para ver o que mostrariam hoje, do jeito que hoje lemos uma revista em quadrinhos. Que estavam falando de mim, eu não compreendia. Eu tinha treze anos”, ele explica, dando de ombros. Lewin não se envergonha do modo pouco sensível com que via o mundo nos tempos de criança. É claro que ele percebia que alguma coisa estava acontecendo. Não somente em Essen, mas em toda a Alemanha. Mas ninguém falava sobre isso naquele tempo – ainda mais com as crianças. “Simplesmente eram menos pessoas a cada dia na escola. Mais um lugar vago na carteira ao seu lado. E a gente sabia: Esses se foram”. Na verdade, o menino de 13 anos não sabia para onde aqueles homens de longas capas negras levavam seus amigos e suas famílias, mas ele sabia que não os veria de novo.

Aliás, quão perigosa a situação se tornava, também para ele e para a sua família, o rapaz somente vai perceber lentamente. Mesmo as vitrines quebradas dos comércios judeus, as pichações e os bandos de arruaceiros não metiam medo em Harold Lewin. Seus pais, entretanto, temem pela segurança da família e em 10 de novembro de 1938, um dia depois da “Noite dos Cristais”, eles fogem com os filhos para parentes na Holanda. Em malas arrumadas às pressas estão somente as coisas mais indispensáveis, que a família precisa para sobreviver. Tudo tem que ser muito rápido e não há tempo para explicações. “Somente foi dito: precisamos ir para a Holanda. Para mim, com 13 anos, isso era uma aventura. É, vamos para a Holanda – até então eu nunca tinha ido para a Holanda. Naqueles tempos as pessoas não viajavam tanto – era uma aventura”, Lewin recorda com precisão o sentimento que teve naquela vez em que saiu de modo tão apressado da Alemanha. Somente mais tarde ele percebe, quão apertada e gratificante foi a empreitada de escapar dos captores nazistas: A sua família estava entre as últimas que puderam entrar na Holanda sem um visto.

A família Lewin consegue abrigo em Amsterdam e participa da edificação da comunidade judaica-alemã. Os judeus cuidam uns dos outros com abrigos, roupas e mantimentos, mas também logo organizam uma biblioteca. Nela, os homens encontram-se para ler jornais ou discutir os acontecimentos políticos. Também Harold Lewin está por lá muitas vezes para buscar novo material de leitura. Sempre que passa ao lado das mesas dos homens mais velhos, ele presta atenção à conversa. Eles não cansam de comparar a Alemanha com a Holanda – sempre com o mesmo desfecho: Na Alemanha tudo era muito melhor. “Aí o sangue me subiu à cabeça”, lembra Lewin. “Nunca fui de calar a boca, então eu disse: O que vocês querem, afinal? Vocês não puderam salvar nada além do que tinham no corpo. Perderam tudo! E vocês continuam dizendo: na nossa Alemanha? E eles ficaram mudos e nunca mais eu ouvi conversa parecida quando estava por lá”. Ele tem que rir ainda hoje quando lembra da cara de espanto daqueles homens e de como apenas consentiam, mordendo os lábios e balançando a cabeça – eles tiveram que aceitar uma lição de moral de um piá de 13 anos!

Harold Lewin gosta de contar essa história na biblioteca, porque ela espelha o seu caráter com precisão. “Eu nunca tive a sensação, como outras pessoas, de que todos os outros estão contra mim. Se você quer ser contra mim, por favor, bata, e eu vou bater de volta. Bem por isso eu estava na resistência holandesa”, explica Lewin e, com isso, volta ao desfecho em si da sua história: aquele da perseguição pelos becos estreitos do bairro das putas de Amsterdã.

“Aí aquela mão me agarra pelo ombro e eu tropeço, mas antes de cair, ela me puxa para dentro da entrada do prédio. Nesse momento eu reconheci que não era um homem da SS, mas uma daquelas putas holandesas”, ele relata. “Ela me levou para o quarto dos fundos, abriu a porta de um armário e me empurrou para dentro. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela havia fechado a porta e virado a chave dentro da fechadura enferrujada”. Mesmo depois de todos esses anos, Lewin ainda sente nas narinas o cheiro faz traças e nos ouvidos os ruídos que a prostituta e um dos soldados alemães fizeram. “Sentado naquele armário eu ouvia os gemidos e os gritos – só não tenho certeza do tempo que isso demorou, mas para mim parecia uma eternidade”, Lewin explica os acontecimentos naquele pequeno quarto dos fundos, decorado à moda espanhola e no qual nada mais havia que aquele armário caindo aos pedaços, a cama e uma mesinha.

Mas, mais alto que os gemidos da prostituta, pareceu-lhe o silêncio que se seguiu. A espera por um ruído lhe pareceu infindável durante o tempo em que permaneceu no seu apertado esconderijo. Ele teria preferido qualquer coisa naqueles momentos do que aquele silêncio ensurdecedor. Os estalos das tábuas do piso e os passos abafados, entretanto, transmitiram-lhe outra lição, ainda mais valiosa: Era ruim estar sentado no escuro e não ouvir nada, mas era bem pior estar sentado no escuro e ouvir alguém se aproximar do armário e não saber quem era. Seu coração batia dentro da boca e ele tinha as mãos suadas. “Finalmente, a chave se moveu na fechadura e a porta foi aberta devagar. No primeiro momento, tive que piscar várias vezes ante a claridade da luz e não pude reconhecer de imediato que a minha salvadora estava diante de mim e não o meu carrasco.” Lewin para novamente e, perdido em pensamentos, endireita seu quipá vermelho-vinho decorado com bordados dourados. “Eu perguntei-lhe porque fez aquilo. Ela sabia do risco que corria. Pois, se tivessem me encontrado, eles também a teriam levado e queimado a sua casa.” Suas mãos tremem levemente e ele segura sua bengala com mais força. Mergulhado em suas lembranças, ele repete as palavras da prostituta, pirografadas em sua memória: “‘Eu sou uma puta’, ela disse. ‘Mas eu também sou uma holandesa. Um ser humano. E por isso eu o chamei’. Estas foram as suas palavras.” Lewin tira do bolso um lenço cinza de algodão e assoa o nariz com força. Lágrimas reluzem nos olhos do velho homem e rolam por sua face durante as frases seguintes: “Este era o exemplo da população holandesa. Esta era a alma da população holandesa. E coisas semelhantes me aconteceram muitas vezes, também depois”.

Quantas vezes coisas assim lhe aconteceram depois, Lewin não quer contabilizar – para isso, elas se repetiram vezes demais. Mas antes da prisão nem mesmo a coragem civil dos holandeses podia salvá-lo. “Isso foi em setembro de 1944 em Arnheim, depois da chegada dos aliados”, lembra Lewin, e conta sobre um posto de controle da SS na entrada de sua cidade natal. “Mostrei aos homens da SS o meu passaporte, que me apresentava como um holandês católico. Entrementes, o meu holandês era livre de erros, de maneira que não perceberam nenhum sotaque. Assim, me deixaram seguir”, segundo Lewin. “Eu talvez tinha percorrido uns 50 metros, quando um dos homens da SS me chamou de volta. Por um instante, eu fiquei simplesmente paralisado como uma pedra e fechei os olhos. Numa fração de segundo eu tinha que me decidir entre voltar ou sair correndo.” Lewin faz uma nova pausa e assoa outra vez o nariz. Desta vez, no entanto, os seus olhos permanecem secos. Ele narra objetivamente como havia decidido voltar na direção das guaritas. Não havia sido difícil tomar esta decisão, como se poderia supor, explica. Voltou porque não queria terminar com um balaço nas costas. Seria mais digno levar um tiro sem dor, na cabeça. De modo algum ele queria acabar como um covarde, levando um tiro pelas costas em plena fuga. Ele havia lutado bravamente até aqui para deixar que tudo acabasse assim. “E aí, novamente ante os guardas, eles verificaram mais uma vez o meu passaporte e, repentinamente, um deles ordenou, com um sorriso maldoso nos lábios: ‘Baixe as calças!’; e naquele momento eu sabia que tudo havia acabado.” Pois, como judeu, ele era circuncidado. Todo o resto foi muito rápido: Sobe na moto, rumo à prisão da Gestapo em Duisburg, onde ele ainda vivenciaria um duro bombardeio da cidade, e dali para o trem rumo a Buchenwald.
“Dentro do vagão estávamos presos com quarenta ou mais pessoas. Todos estavam em pé, coladinhos uns nos outros, num velho vagão de gado. Não havia lugar suficiente para que nos sentássemos, mesmo que as pernas nos doessem a todos de tanto ficar em pé. No início, as crianças ainda choravam, reclamavam de fome – mas em algum momento elas ficaram quietas.” Harold Lewin pressiona os lábios e seu gogó de adão dá pulos, enquanto engole soluços. São as cruéis lembranças reais de um homem que jamais esquecerá a aparência dessas crianças nos braços sem forças de suas mães. “Eu não sei quanto tempo levou a viagem. Em algum momento estávamos parados três dias na estação ferroviária central de Weimar. Aqueles que ainda podiam, gritavam por socorro cada vez que um cidadão se aproximava do nosso vagão. Mas eles apenas se viravam e desviavam o olhar. Algumas vezes até tapavam o nariz, por conta do fedor bestial que exalava do vagão.” É por isso que Lewin fica irritado quando as pessoas contam a seus filhos e netos que não sabiam nada a respeito.
Chegando a Buchenwald, fomos tocados para fora do vagão como gado. Depois do muito tempo em pé, ele estava com as pernas bambas e a brita perfurava as solas dos seus pés, mas ele tentava manter-se ereto e aparentar boa saúde – tão saudável quanto era possível parecer, mesmo imundo e com fome. “O serviço forçado no campo era duro. Havia pouco para comer, o inverno se aproximava e passávamos um frio de lascar. Todo mundo em Buchenwald estava doente, imundo e cheio de piolhos, mas ninguém tinha forças para envergonhar-se disso. Vergonha e qualquer dos outros sentimentos não existiam em Buchenwald; para isso não tínhamos forças.” Harold Lewin segura a sua bengala com tanta força, que as suas articulações saltam esbranquiçadas. No comitê externo de Dessau, no campo de concentração de Buchenwald, ele sobreviveu durante três quartos de ano, enquanto outros já morreram após um ou dois meses. O que ele viu naquele tempo, o perseguirá pelo resto da sua vida. “Eu vi gente no campo de concentração de Buchenwald que corria ao encontro das cercas eletrificadas com alta tensão, pegava nelas com as duas mãos e colocava um fim nessa vida que havia se tornado insuportável. E eu vi a crueldade brutal dos guardas da SS, que tinham um prazer perverso em humilhar e assassinar os prisioneiros. Certa vez, um homem da SS contava os prisioneiros que voltavam dos trabalhos forçados. Deu um passo em direção ao último da fila e arrancou o seu boné da cabeça. Aí jogou-o diante do portão e dava risada. O prisioneiro correu para pegá-lo, mas, enquanto corria, ele ergueu a arma, mirou e atirou. Acertou nele duas, três vezes, até que ficou imóvel no chão. ‘Fuzilado durante a fuga’, foi o veredito.  Seu sangue misturava-se à neve e...”, Lewin interrompe. Fecha os olhos, como se quisesse recolher as lágrimas. Sua voz soa embargada e ele engole novamente, antes de conseguir continuar: “... o guarda foi premiado com um dia especial de folga por conta daquilo.”

No desprezo pelo comportamento dos guardas ele mistura o seu próprio remorso. Remorso de não ter agido de outro modo em situações como aquela. Mas, nove meses de campo de concentração endurecem uma pessoa. “Sim, eu vi os assassinatos em massa. Mas a gente naquele tempo não olhava mais para os mortos. Eu vi muitos mortos. Mortos demais”, admite Lewin, enquanto massageia a ponta do mariz com o dedão e o indicador. Ele parece cansado – exaurido. As lembranças lhe consumiram muitas forças; mesmo assim ele continua o relato. Fala do seu último grande medo, depois que os campos de concentração foram libertados e Hitler havia sido derrotado.

“Voltei para Amsterdã em meados de 1945. E eu tinha medo de voltar para aquela casa onde meus pais e irmãos haviam morado. Eu temia ser confrontado com a notícia de que eles não estavam mais ali. Que os nazistas ainda tivessem tido tempo de buscá-los. Levei três dias para voltar lá. Por sorte, eu acabei encontrando todos vivos – alimentados pela resistência holandesa. Eu tive sorte. Muita sorte, até”, conta Harold Lewin, e a lembrança do momento em que ele finalmente pôde reencontrar a sua família devolve as lágrimas aos seus olhos. Ele torna a enxugá-las do seu rosto, tentando a todo custo evitar que sejam vistas – ele não quer chorar. Mas também não consegue evitá-las. Para isso, os sentimentos que essas lembranças todas evocam são fortes demais.

“Um mar de sangue foi o resultado”

Calmo e recomposto, Harold Lewin senta-se em uma das cadeiras de madeira da sinagoga. Ele havia terminado com o passado, diz objetivamente; mas, ainda há muitas coisas que o irritam profundamente. “É tão simples pichar uma suástica numa vitrine, colar adesivos com palavras de ódio num poste – tudo muito fácil. Mas será que eles não sabem o que está por trás disso? Um mar de sangue é o resultado. Mais de 60 milhões de mortos na Europa, um mar de sangue não somente de estrangeiros e de judeus, mas também do sangue de muitos alemães! Tudo isso está por trás da suástica, que eles rabiscam com tamanha facilidade.” Ele bate energicamente no chão com a sua bengala, para assentuar suas últimas palavras. A cada palavra este homem, sempre tão comedido e quieto, eleva mais a voz. Parece ser importante para ele contar sua história e relembrar este passado – mas é ainda mais importante para ele dar uma chacoalhada para acordar as pessoas. Ele tem esperança de que, em algum momento, todos esses neo-nazistas e extremistas de direita compreenderão o que está por detrás de seus símbolos e palavras de ordem. Ao que levou todo este ódio. E exatamente neste sentido também que vão as suas últimas palavras: “Eu sou um judeu consciente. Eu nasci aqui, bem como meus antepassados. Apesar desse terrível passado, eu amo esta terra. Ainda existem muitos problemas hoje em dia. Mas, não se agarrem a essas coisas do passado; vivam para o futuro, para que vocês nunca precisem vivenciar o que nós vivenciamos.”
Harold Lewin levanta com dificuldade, segura-se no banco e apoia-se em sua bengala. Com passos lentos e trôpegos, sai da sinagoga. No corredor, todos os que casualmente estavam ali, abrem caminho para dar passagem ao velho homem; também o rabino da comunidade de Recklinghausen. É a maneira de todos demonstrarem respeito por ele. Quando Harold Lewin finalmente abre a porta e caminha para fora, o sol brilha. A neve brilha sob a luz e o velho homem sorri. Depois de uma vida agitada, ele encontra a sua paz – na Alemanha e com a Alemanha.

(Entrevista realizada em dezembro de 2010 e julho de 2011. No dia 23 de outubro de 2012 Harold Lewin morreu na idade de 86 anos).

Fonte: www.evangelisch.de

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Haverá um novo 1968?

Apenas meio século nos separa do ano mais explosivo da história recente. Promovido por jovens estudantes em sua maioria, 1968 foi um ano atípico, que desencadeou uma explosão em escala global. Muitos dos temas que ainda hoje causam tanta polêmica foram para a rua naquele ano, em festivais, encontros, canções, gritos de guerra e protestos, muitos deles sangrentos.
A juventude de 1968 protestou contra a guerra do Vietnã e a guerra fria, o imperialismo norte-americano, a desigualdade e injustiça promovidas pelo capitalismo, a opressão das ditaduras comunistas (Leste Europeu) e militares (América Latina) e em defesa de uma democracia mais participativa. Os protestos clamavam contra o autoritarismo, a bomba atômica e as desigualdades sociais. Gritava a favor dos direitos humanos, das liberdades e dos direitos das minorias.
Nem a igreja escapou da onda de choque, arejando a teologia, a liturgia, a estrutura, abrindo espaço para as comunidades de base, a celebração abrilhantada por bandas e para uma teologia que ficou conhecida por falar de libertação.
Num movimento de contracultura sem qualquer precedente na história, 1968 abriu as portas para a liberdade do corpo, o movimento feminista, a igualdade de gênero, o fim do patriarcalismo, do machismo e da violência contra as mulheres. Ou seja, 1968 continua muito atual e alguns temas continuam pululando à flor da pele da humanidade. O movimento hippie à frente, os protestos clamavam que é proibido proibir.
Tudo começou na Universidade de Sorbonne em Paris contra a burocracia educacional. Foi como acender um rastilho de pólvora que dava a volta ao mundo. Em seguida, Itália, Alemanha, Tchecoslováquia, Estados Unidos e o mundo todo pegaram fogo. No Brasil a Guerra Fria tinha um alvo: a ditadura militar, coisa que se espalhou pela Argentina, Chile e outros países reprimidos pelo exército no poder.
Em suma, 1968 foi um ano em que as utopias pipocavam ao redor do planeta como cogumelos (muitas vezes movidas pelos próprios). Foi o ano que deu uma nova cara à sociedade, à política, ao comportamento e à própria juventude. Seus ídolos musicais, muitos deles mortos há muito, jamais desceram dos palcos e das paradas de sucesso nesses 50 anos.
Pergunto: 2018 não deveria tornar-se um novo 1968? As mesmas polêmicas, problemas, diferenças, ideias e utopias continuam mais atuais do que nunca. Ainda mais em meio a esta sórdida onda de conservadorismo, que avança como uma mancha gigante de fungos pelo planeta.
Mas, talvez não seja possível. Enquanto os jovens se entregaram às sereias que seus avós combatiam heroicamente, os avós hoje viraram hippies cooptados pelo stablishment e se unem aos gritos que pedem o retorno a tempos anteriores a 1968. Querem derrubar as conquistas de uma geração que tornou o mundo mais interessante.
É, talvez um retorno de 1968 seja inviável mesmo...
Mas eu me nego a desistir de algumas das bandeiras, das utopias e das lutas daquela juventude. Enquanto insisto, lhe desejo paz e amor!

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Redomas ou ferramental?

A dicotomia entre o que se deve ensinar na escola ou aprender em casa não é fruto de uma avaliação séria sobre como funciona a educação. Nada garante que o essencial ensinado por professores em sala de aula ou pela família em casa seja também seguido na vida das novas gerações. Aprende-se o bem em casa e o mal na rua, o bem na rua e o mal em casa. Todo o resto é idealização de um modelo familiar e escolar que não existe.
Além disso, não são somente esses dois ambientes que formam o caráter dos nossos filhos. Se você acredita que só os pais e os professores influenciam seu filho, você não conhece o poder dos amigos, da rua, das mídias sociais. Há muito ruído na educação. Os sons que vêm de fora são muito mais poderosos do que o filtro que você tenta colocar para proteger seu filho.
A educação não é como um banco, onde se deposita dinheiro e saca dinheiro quando precisa. Na educação você deposita o bem e colhe o mal ou vice-versa. Cada um e cada uma faz bom ou mau uso daquilo que lhe é transmitido. Acata conselhos ou os despreza. Segue os exemplos ou inventa seu próprio modo de vida. Como já cantava Frank Sinatra, "I did it my way!".
O mundo está cheio de exemplos de adultos que estudaram nas melhores escolas e cresceram nas melhores famílias e se tornaram criminosos; e outros tantos que cresceram num ambiente hostil e se tornaram ícones.
Assim, não tente proteger o seu filho deste ou daquele conteúdo. Não o coloque numa redoma de vidro, pois assim não terá anticorpos para enfrentar a dureza da vida. Redomas são coisa de Amish. Você o ajudará muito mais ao dar-lhe um ferramental para lidar com o bombardeio que é a vida diária.
Que ferramental seria este? Bem, aí já é outro papo...

DEPOIS DE WORMS, A CAÇADA A LUTERO

No último dia da Dieta de Worms, 26 de maio de 1521, já sem a presença de Lutero, foi decretado o Édito de Worms. O documento fora redigido ...