quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Nosso amor pelos carros


A reflexão sobre o que vamos fazer com relação à superpopulação de carros em nossas cidades é necessária e urgente. Porém, ainda vamos patinar muito na incoerência antes de encontrar uma saída razoável. O último dia sem carro se tornou um evento mundial e atinge até a indústria automobilística cada vez mais empenhada em criar novidades compatíveis com a nova onda preservacionista (combustíveis alternativos, eletricidade etc). Mas, confessemos, foi um fracasso! Em Blumenau havia 20 por cento mais carros nas ruas no dia sem carro do que em dias normais. Sim, choveu muito. Mas a chuva foi uma desculpa bem-vinda para o nosso comodismo, convenhamos.
A grande verdade é que temos uma relação doentia com essas carruagens. São construídas para as famílias, com quatro, cinco, sete e até nove lugares. Mas, a maioria deles anda por aí com um ocupante só; o seu orgulhoso dono.
No ano de 2009 estamos reproduzindo fielmente no Brasil o que acontecia nos anos 1940 e 1950 nos EUA, como mostra uma série de fotos que circula na internet com cegonheiras lotadas de carros da época, novinhos em folha (uma dessas fotos está aí em cima, para você curtir). Hoje, nós topamos com incontáveis dessas parideiras de carruagens zerobala, despejando milhares de carros novinhos em folha para continuar entupindo nossas já entupidas ruas das nossas poluídas cidades. Tudo isso, para continuar alimentando o nosso sonho de ter um desses brinquedinhos nas próprias mãos.
Até há tentativas de mudar isso, mas sem sucesso. Curitiba tem corredor exclusivo de ônibus há décadas e excesso de carros, ainda assim. São Paulo tem o metrô mais moderno da América do Sul, mas engarrafamentos diários de mais de 150 quilômetros de extensão. O rodízio de automóveis por lá é um logro que aumenta ainda mais o número de registros de IPVA. Até vereadores burlam a lei com placas especiais. As ciclovias de Blumenau são trechos descontinuados e cheios de armadilhas, que jogam o ciclista diante dos veículos sem aviso prévio. Para usar bicicleta em Blumenau tem que ter mais que sangue frio.
Enquanto isso, as páginas de todos os jornais – dos grandes diários aos pequenos tablóides regionais – estão lotadas de ofertas, com IPI reduzido, para que também você compre o seu carro. Anúncios de página dupla de carros de luxo, encartes ostentando notórios bebedores de gasolina e classificados com carros e mais carros para vender.
Aliás, a imprensa especializada em veículos nunca traz reportagens sobre novidades no transporte coletivo. Isso não interessa. O que vende é carro, salão de Frankfurt, de Detroit, de Tóquio. Como conscientizar a população de que usar ônibus é bom? Bom é andar de carro! Quanto mais potente e rápido, melhor!
Ainda nos falta mesmo é vontade de nos livrarmos do sonho em torno do carro. Todos querem ter um na garagem. Ele é tudo de bom em nossos anseios mais intransferíveis. Enquanto isso não mudar, vamos continuar na luta diária por um espaçozinho nas ruas para o nosso objeto maior de desejo. O meu, confesso, continua ocupando o seu.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Honduras, coturnos e democracia



É muito impressionante ver como tem gente quieta no Brasil com essa história de Honduras. Não dizem nada. Nem um pio, para não revelar o que pensam realmente. Em seu íntimo, porém, estão batendo palmas para Micheletti e sua tropa, resvalando num indisfarçável saudosismo daqueles 20 anos de botautoritarismo que vivemos por aqui.
Na visão dessa horda de dissimulados adeptos da ditadura, os anos entre 1964 e 1985 foram a melhor coisa que aconteceu ao Brasil. Segundo eles, esse era um tempo de prosperidade, de ordem e de amor à pátria como nunca se viu, nem antes, nem depois.
Todo exército é absolutamente desnecessário. E falo do que eles sabem fazer – a guerra – e do que eles não sabem fazer – a política.
A humanidade não precisa da guerra e, por isso, não precisamos de soldados, de treinamento militar e de armas. A paz se constrói com pontes, não com armas. E construir pontes não é lição relevante na caserna, a não ser que seja para encurtar o caminho que conduz ao inimigo. O treinamento militar cria assassinos, cuja principal meta é matar todos os inimigos.
Como é que gente assim pode conduzir um país? O diálogo não é a sua linguagem. Coturnos não dialogam. Coturnos pisoteiam. Por conseguinte, a democracia – árduo fruto do diálogo – não faz parte do ideário militar. Alguém já viu um exército democrático? Quem sequer ousar questionar a rígida hierarquia verde, sofrerá as mais duras consequências.
O que eles farão no comando de uma nação? Irão adotar essa mesma linha de comando para toda a sociedade. E já tivemos demais disso na América Latina. Abaixo os coturnos, a truculência, a tortura, a exceção e o desrespeito à constituição.
Em nome da prevalência da democracia, do direito constitucional, da liberdade de expressão, dos direitos humanos e da vontade manifesta soberanamente nas urnas, meu desejo mais profundo é que a diplomacia brasileira não arrede pé. Bravos defensores da democracia, não se intimidem! Vocês estão cumprindo uma missão humanitária em Honduras! Zelaya pode não ser o ideal para os hondurenhos, mas ele foi o escolhido deles. E ele deve cumprir o seu mandato até o último dia, doa a quem doer. Se Micheletti e Cia. quiserem o poder, que seja por meio das urnas e não por meio das armas.

Zukunftswerkstatt em busca do novo


A Igreja Evangélica da Alemanha resolveu aplicar corajosamente a ideia da Oficina do Futuro (Zukunftswerksatt - veja post anterior) na própria casa. Passou o último final de semana (24 a 27 de setembro) reunida em Kassel, com mais de 1200 delegados de toda a Alemanha, em busca do sonho de uma igreja mais participativa. Na visão do presidente Wolfgang Huber, a Alemanha precisa ser re-evangelizada.
Há 20 anos, esta preocupação ainda era somente de humoristas e visionários, que não eram vistos como sérios o suficiente para serem considerados. Trago à memória o chargista e pastor Tiki, que publicou diversos materiais nos anos 80 antecipando a atual crise em seu traço sarcástico. Numa das charges que não me sai da cabeça, ele desenha a nave de uma enorme catedral cheia de bancos vazios e, dentro dela, uma pequena igrejinha de madeira repleta de fiéis, aos pés do majestoso altar da catedral. Diante deles, o pastor comemora: “Finalmente temos uma igreja lotada novamente!”. Em outras charges, ele representa missionários africanos, com a Bíblia na mão, desembarcando em território alemão, dizendo que vinham para evangelizar a Europa, depois que a África havia sido convertida a Cristo pelos europeus.
A igreja perdeu espaço e a fé cristã anda em franca decadência no país de Lutero. A poderosa igreja protestante alemã experimenta uma evasão sem precedentes em sua história, ameaçando a sobrevivência financeira de incontáveis serviços e projetos dentro e fora da Alemanha. Eles eram a alma missionária da EKD desde sua criação, após a amarga experiência da segunda guerra mundial. Enquanto isso, cada vez mais pessoas se declaram cristãs sem estarem ligadas à igreja, ou se dizem ateus.
Também nós precisamos investir mais em reflexão sobre o futuro. As igrejas tradicionais aqui no Brasil, inclusive a IECLB, estão em crise. Difícil é admitir isso. Mas os efeitos dessa crise se fazem sentir com força cada vez maior.
O Sínodo Vale do Itajaí da IECLB tem trabalhado com a ferramenta da Oficina do Futuro em seu planejamento estratégico, também em diversas paróquias da sua área de atuação (Blumenau, Brusque, Timbó, Indaial, Pomerode, Benedito Novo, Itajaí, Balneário Camboriú, Itapema e cidades adjacentes). As primeiras experiências são promissoras e têm feito os presbitérios sonharem. Ainda é tempo de reverter por aqui. Na Alemanha, apesar do espetáculo ocorrido em Kassel, não há tanta certeza assim de que se consiga concretizar os sonhos (belíssimos!) que surgiram durante a Zukunftswerkstatt.

Um método para exercitar a utopia



Uma das mais admiráveis características do moderno povo alemão é a sua capacidade de planejamento. Impressiona a ausência quase absoluta do improviso, do jeitinho, da mudança de última hora. Antes da execução de qualquer projeto, ele foi exaustivamente estudado em todos os seus ângulos e nuances, no sentido de reduzir ao mínimo qualquer risco de surpresa ou falha.
Não só os grandes projetos são alvo de planejamento rigoroso. Cada passo do dia-a-dia é concretizado somente após o necessário tempo de preparo. Esse rigor no cuidado com o que se faz e as consequências de cada ato na vida pessoal e coletiva levou os alemães a desenvolver diversas teorias científicas que ajudam a planejar.
Uma dessas teorias, que me fascina, é a Zukunftswerkstatt (Oficina do Futuro), desenvolvida pelo futurólogo alemão Robert Jungk, com participação de Rüdigerr Lutz, Norbert R. Müllert e outros pesquisadores. Já no final dos anos 1980 eu participei de um seminário sobre o tema na Alemanha. Foi uma das melhores reflexões que já fiz.
A Zukunftswerkstatt é um bem-fundamentado método de trabalho para instigar a fantasia, na busca de soluções para os problemas da sociedade a partir de ideias inovadoras. O que mais fascina no método é sua absoluta aposta no trabalho coletivo. Ninguém impõe nada. O grupo trabalha em conjunto, a partir dos aspectos que deseja melhorar, na busca de soluções coletivas, com o acompanhamento de moderadores especializados no método.
O método da Oficina do Futuro tem um amplo espectro de aplicações, que vai desde simples aulas no ambiente escolar, passando pela solução de problemas e a busca de idéias e estratégias inovadoras até sua aplicabilidade em comunicação. Projetos para o futuro, objetivos e resoluções para entidades, organizações, associações de bairro, ONGs e os mais diversos grupamentos são buscados em conjunto, num ambiente democrático e inclusivo. Assim, a Oficina do Futuro também é uma excelente forma de promover participação cidadã na busca coletiva de soluções para os problemas comuns da rua, do bairro, da cidade.
O principal objetivo do método é a busca de soluções e de caminhos que os participantes já procuravam sem sucesso antes de aplicá-lo. Com um assunto à mão, busca-se por perspectivas e elucidações (novas formas de abordagem e de solução), além de trabalhar com o que cada participante sente em relação ao futuro (a personalidade de cada um torna-se central), valorizando a experiência de vida de cada um. Ajuda a desconstruir medos em relação ao futuro e a obter autoconfiança em relação à própria capacidade de resolver os problemas.

Como funciona – O método abrange três fases principais, sem contar aspectos iniciais como a preparação, a escolha do tema e do local.
A primeira fase é a da crítica/reclamação, período em que os participantes expressam sua insatisfação, crítica, experiências negativas em relação ao tema proposto. A fase deve acontecer sem barreiras ou regras que limitem ou cerceiem a participação. A análise dos problemas não faz parte desta fase, que consiste numa listagem para a continuidade dos trabalhos na fase seguinte. O jeito mais prático, é fazer uma tempestade de idéias em pequenos bilhetes que depois são ordenados por temáticas segundo os princípios do brainstorming.
A segunda fase é a da fantasia/utopia, na qual se requer a participação criativa de cada um dos participantes. Exige “asas” para pensar de maneira utópica, com base na afirmação: “como seria bom, se…”. Afirmações assassinas, do tipo “Isso é impossível! Isso é ridículo”, são proibidas. A fantasia deve ser completamente livre de qualquer controle. A seleção das idéias acontece da mesma maneira anterior, por meio dos bilhetes do brainstorming.
A última fase é a da práxis/concretização, que liga as duas fases anteriores. Agora sim, é avaliado o que pode ser concretizado ou não. Nesta fase o método exige o trabalho com dinâmica de grupo e a participação de pessoas qualificadas, profissionais ou especialistas, para ajudar no desenvolvimento da idéia. Nada impede, porém, de continuar trabalhando apenas com o grupo, considerando seus próprios integrantes os especialistas que vão solucionar o problema. A fase necessita, porém, de conhecimento de planejamento estratégico, conhecimento para a execução e o domínio de processos de trabalho grupal.
Cabe ao moderador, além de orientar cuidadosamente cada uma das fases, dizer quando a Oficina do Futuro está concluída (o objetivo foi alcançado ou uma nova oficina deve ser implantada, para continuar a reflexão). Toda a caminhada é repassada e avaliada, com a pergunta final pelo que deve ser feito a seguir. A avaliação da Oficina do Futuro é fundamental, porque permite aprimorar o processo, aprendendo com os erros e os acertos.

Ser vivo de estimação


Uma experiência inusitada me fez refletir sobre um aspecto pouco considerado na nossa relação com os seres vivos que nos cercam. Aproveitando a bela manhã de sol, estávamos passeando no calçadão da beira-mar de Balneário Camboriú. Muita gente fazendo o mesmo, com a indisfarçada intenção de espantar o frio. Carrinhos de bebê das mais diversas grifes e cães… Cachorrinhos e cachorrões de todos os tamanhos eram solenemente conduzidos entre os humanos na calçada.
Ao chegar à Praça Central, um vendedor de orquídeas ainda organizava seus espécimes de uma das flores mais típicas do litoral brasileiro, embora nem prestemos tanta atenção nisso: a orquídea é nossa! E é de uma beleza tipicamente brasileira: quente e criativa. Ela se apresenta de tantas formas, cores e aromas diferentes que chega a confundir a gente. Desde muito pequeno admiro esta flor. Meu pai já tinha um orquidário e, quando tiver tempo, também vou ter o meu.
Minha esposa encantou-se com uma orquídea da terra, maravilhosa, cor de carne, com quatro majestosos galhos repletos de flores. Num dia pós-dia-dos-namorados, não podia negar o regalo a ela, que é a mais perene das orquídeas na minha vida. Compramos o enorme vaso com os quatro cachos de flores, o metemos numa sacola e voltamos para casa. As flores pareciam ainda mais reluzentes sob o sol da manhã.
Tínhamos nos distanciado uns bons dois mil metros de casa e, sem nenhuma intenção, pegamos cada um numa das alças da sacola que continha a imponente orquídea. Caminhávamos de mãos dadas com aquela flor e, a cada encontro, nos divertíamos com os olhares e os comentários dos passantes e dos abancados. Alguns chegavam a retirar os óculos escuros para admirar melhor aquele inusitado espetáculo. Outros comentavam em voz alta sobre a beleza da flor. Acho que nem nos percebiam e tinham razão nisso.
A cada passo, nossa satisfação aumentava e passamos a desfilar a orquídea ostensivamente, como quem leva um cão de raça para passear. Se outros desfilam o seu cão, por que não podemos levar a nossa flor para passear? Plantas também têm sentimentos, vocês sabiam? Ah, e como têm! Uma palavra, um carinho, um olhar detido podem fazer mais milagres que uma rega com adubo foliar. Pode ter sido só impressão, mas aquela orquídea ficou ainda mais cor-de-carne depois daquele passeio numa das mais badaladas avenidas do litoral do sul do Brasil.

"Libertou-se o menino" em vídeo

O Williams e seu pessoal montaram um vídeo com o texto “Libertou-se o menino” e postaram no YouTube. Muito bacana! Veja você também. http://www.youtube.com/watch?v=0W0VUp_PeU0

Libertou-se o menino


Livre. Finalmente o pequeno menino negro aprisionado no corpo do astro pop deformado e ensandecido pode voar para a sua Neverlândia imaginária, agora real. O pequeno prodígio havia sido aprisionado naquele corpo por causa do seu talento. Meio século de insuportável prisão. O ícone da pós-modernidade, rei do pop, o insuperável, inimitável e inatingível astro sufocou na angústia do seu pequeno ser, ainda tão inocente, tão bonito, tão angelical quanto antes.

Michael foi vitimado pela sua própria perfeição e morreu de fadiga, na insana tentativa de superar o insuperável, ou seja: ele mesmo. O pequeno príncipe havia sido engolido pelo próprio astro em que vivia.

Agora, está finalmente livre o menino. O que o mundo vela em Los Angeles é a fétida carcaça zumbi do rei do pop; do ídolo amalgamado pelas deformidades insanas da humanidade consumista. O menino não está mais lá. Jaz um corpo disforme, alvejado e plastificado pelo insaciável monstro capitalista, ele mesmo um zumbi que se nega a morrer. O que enterramos não tem mais uma única gota de sangue, de vida, de dignidade. Tudo, absolutamente tudo, foi avidamente sugado do seu interior.

O menino Michael se foi, para fazer a alegria dos celestes corais de anjos infantes. Agora, além de cantar glória a Deus, eles dançam sobre as nuvens nos passos do moonwalker. E se riem da tragédia que foi este meio século daquele menino negro, agora entre eles. Riem-se também dos milhões que continuam brincando com o zumbi morto e dele ainda irão recolher incontáveis sacolas dos dólares que continuarão jorrando como rios do seu interior. Elvis não morreu. Michael também não morrerá. O astro-monstro sabe disso.

O que se foi é o menino. Livre! Liberto para viver num lugar digno na memória de gerações. Como no “Retrato de Dorian Gray”, ao lado do quadro de um lindo menino negro de cabelo Black-power jaz agora o decrépito corpo de um astro pop, deformado e envelhecido. Podem colocá-lo no formol, porque o menino não está mais nele. Vai em paz, Michael! Finalmente estás livre.

A lição de Armstrong


Depois de sentir seu corpo colado ao banco da apertada cabine da Apolo 11, alojada na ponta do poderoso foguete Saturno V durante o lançamento no dia 16 de julho de 1969, e após passar quatro dias no espaço, o astronauta americano Neil Armstrong estava ansioso. Junto dele no módulo lunar estava também o astronauta Edwin Aldrin. Na Apolo 11, em órbita da Lua, estava o terceiro membro da equipe: o astronauta Michael Collins.
No comando do módulo lunar, Armstrong havia acabado de pousar na Lua no dia terrestre de 20 de julho de 1969. Prestes a abrir a escotilha, ele seria o primeiro ser humano a colocar os pés na fofa superfície do satélite da Terra. No distante planeta azul visível no horizonte, 1,2 bilhão de terráqueos estavam grudados à tela de suas TVs.
Ele sabia bem o inacreditável momento histórico que protagonizava. E também já sabia o que iria dizer tão longe de casa. Quando sua bota listrada tocou o poeirento solo lunar, ele disse: “É um pequeno passo para um homem, mas um gigantesco salto para a humanidade”. Uma frase tão emblemática quanto o “terra à vista” dos portugueses, quando esses avistaram os costados de Porto Seguro.
Por cerca de duas horas e meia, Armstrong e Aldrin caminharam, pularam, fotografaram e realizaram diversos experimentos em solo lunar. Eles seriam seguidos por vários outros, mas nenhum deles jamais os superou no status de heróis e de figuras humanas especiais, muito especiais… e únicas.
Um feito magnífico. Muitos não acreditaram no que seus olhos viam na TV. Muitos negaram-se a crer no feito ainda muito tempo depois. Até hoje muitos tentam juntar provas de que aquilo tudo foi uma grandiosa encenação e procuram “evidências” do que classificam como a “maior fraude do século 20”.
O fato é que o extraordinário feito de 40 anos atrás levou os Estados Unidos da América a superar seus arquirrivais na mais louca e arriscada corrida da história da humanidade: a corrida espacial. Os soviéticos haviam iniciado com larga vantagem quando colocaram o primeiro homem em órbita da Terra mais de dez anos antes disso. “A Terra é azul”, extasiara-se Gagarin então.
A própria NASA admite hoje que – apesar dos muitos momentos de suspense e até de terror, com gastos estratosféricos, alguns desastres, diversas vítimas e muita improvisação – teve muito mais sorte do que juízo. Se aquela disputa insana valeu a pena? Talvez. Além de algumas lições interessantes sobre os astros, hoje russos e americanos deixaram a infantilidade de lado e trabalham em projetos de parceria no espaço.
A Lua? Bem, deixou de ser um lugar interessante para ambos. A não ser que, algum dia, sirva de “plataforma” para voos mais altos. E hoje, apesar da frase de efeito de Armstrong, a humanidade tem certeza de que ir a Júpiter, a Marte ou a qualquer outro lugar, mesmo que seja muito distante da Terra, na proporção do universo conhecido, será apenas um pequeno passo para o homem que chegar lá… e para a humanidade também. O passo gigantesco, pelo menos por enquanto, permanecerá refém das obras de ficção científica.
Se houve algum passo gigantesco para a humanidade depois das viagens espaciais, então foi a descoberta de que a Terra é o nosso único lar no espaço. Aquela esfera azul flutuando contra o denso fundo negro do universo é nossa casa. Ninguém viu isso de forma mais eficaz do que Armstrong, Aldrin e Collins… e muitos outros. Todos, sem exceção, voltaram maravilhados.
Numa ampliação do significado da definição do novo homem descrito na Bíblia, quem teve aquela visão única transformou-se em nova criatura. Passou a perceber, de maneira mágica, que tudo o que temos que fazer é preservar nossa casa.
Talvez muitos mais deveriam ver a Terra do espaço, para que a humanidade mude sua relação predatória com o único planeta habitável que conhece e pode alcançar com seus pequenos ou gigantescos passos. Quarenta anos já se passaram desde que a primeira criatura humana experimentou a mais maravilhosa de todas as visões. Não temos outros quarenta anos para aprender a lição de Armstrong.

(Artigo publicado na revista Novolhar Nº 28 - http://www.novolhar.com.br/)

O ecumenismo é minha religião


O ecumenismo é uma das minhas bandeiras mais queridas. Sempre imagino que, no dia do juízo final, Cristo vai convocar os apaixonados defensores da supremacia de suas próprias confissões e vai colocá-los frente a frente, determinando: “Agora, apertem as mãos e peçam desculpas um ao outro! Um abraço bem forte para terminar!”.
Católicos e protestantes, evangélicos e pentecostais, ortodoxos e conservadores, carismáticos e progressistas seriam conduzidos pelo Senhor a uma abraço fraternal universal e, depois disso, nos moldes de um curso de reeducação de motoristas infratores, teriam que participar de um curso de 30 horas-aula sobre os princípios básicos do ecumenismo e da convivência pacífica dos diferentes.
Seria ótimo se não precisássemos esperar até o derradeiro dia para que comece a ocorrer uma profusão desses abraços reconciliadores. Melhor ainda seria, se aumentasse o número de cristãos dispostos a participar do tal curso sobre os princípios básicos do ecumenismo. Ele existe em muitos lugares, mas não é obrigatório. Deveria ser. Talvez tivesse mais alunos.
Entretanto, mais que qualquer curso, encontro internacional, ONG, federação ou conselho de igrejas, o verdadeiro, quente e fraterno ecumenismo se dá no encontro de pessoas. Ele acontece olhando dentro dos olhos do irmão. Emílio Castro (na foto) dizia isso. Quando a gente abraça o outro, fica amigo dele, estreita laços e relacionamentos, as diferenças desaparecem. E elas se anulam definitivamente quando há uma causa comum pela qual lutar.
Devemos buscar a aproximação ecumênica, não no sentido de anular, incorporar ou absorver o outro por osmose. Mas no sentido de compreender, aproximar e aprender com a fé e a prática religiosa do outro. Este é um espírito que anda muito em falta ultimamente. O ecumenismo está atravessando uma era glacial. Há um recrudescimento da ideia do pensamento único, segundo a qual todos devem pensar como eu ou estão errados. Em sua variedade litúrgica, teológica, programática, diacônica o mundo das confissões cristãs é uma verdadeira enciclopédia de enriquecimento pessoal e coletivo. Não dá para desprezar esse universo.
Por isso, não se feche. Não se afaste. Aproxime-se. Conheça o outro. Participe de seus sonhos, projetos, crenças e manifestações. Ouça antes de emitir juízo. O abraço é melhor que o empurrão. A mão estendida é melhor que o punho fechado. Antes de contaminar-se, você poderá sair enriquecido. Incrivelmente enriquecido. Afinal, a verdade está em Cristo e não em nós…

Relações econômicas injustas



Um dos nós mais bem amarrados do mundo é a persistente injustiça nas relações econômicas internacionais. Já há décadas o Brasil, por exemplo, vem oscilando entre a 11ª e a 9ª posição no compe­titivo ranking das maiores economias do Planeta. Após anos de reservas acumuladas mês a mês, o Brasil deixou de ser devedor para ser alçado ao status de credor na escala dos países. Agora está na lista dos países do mundo cuja economia merece confiança para investimentos futuros. A nona economia do planeta é tão grande que, por exemplo, todo o Produto Interno Bruto (PIB) da Argentina é equivalente ao PIB do estado de São Paulo, o mais industrializado do país. O PIB dos Emirados Árabes é o mesmo do estado do Rio Grande do Sul e o da Bulgária é semelhante ao do estado de Santa Catarina.
Toda essa competitividade do Brasil é destaque e faz com que o país tenha cada vez mais respeito internacional. Mas olhando para o lado de cima da escada econômica, é possível ver oito nações gigantescas do ponto de vista econômico, cuja economia poderia resolver o problema da fome do mundo inteiro, por exemplo, sem que isso afetasse seu modo de vida de forma substancial.
Os EUA ocupam o topo desta lista, apesar da crise econômica que enfrentam no momento. A economia dos EUA é tão grande que todo o PIB do Brasil (a nona economia do mundo!) cabe inteirinho no PIB da Califórnia, o estado americano mais rico. O pequeno estado de Nova York tem o PIB de todo o México. A dificuldade de caixa enfrentada pelos americanos é semelhante à de um rico que deixa de comer filé mignon e passa a comer picanha. Mas é uma dificuldade que afeta o bolso de todos que vendem filé mignon para os EUA.
A relação fica ainda mais injusta quando se compara as populações desses países. A China, por exemplo, é a quarta economia do mundo. Entretanto, tem 1,3 bilhão de chineses para alimentar, mais que duas vezes e meia a população somada dos três primeiros países mais ricos da lista.

A situação fica inaceitável, no entanto, quando se olha para a pobreza da África, o “continente invisível” para a economia mundial. Isso fica evidente quando se compara o PIB de alguns países africanos com o fatura­mento das maiores empresas do mundo. Descobre-se então que PIB do Congo equivale às vendas da Microsoft e o do Sudão às da Siemens. Não faltam empresas brasileiras nesta lista. A Petrobrás, petrolífera estatal brasileira, fatura tanto quanto a Líbia. O maior banco privado do país, o Bradesco, junta o equivalente ao PIB da Namíbia, o Banco do Brasil (maior banco estatal) tanto quanto Mali e a Eletrobrás (controladora da energia elétrica) tanto quanto a República Centro-Africana.

O olhar de Emmi


Esta imagem me chamou a atenção. Trata-se de um animal de zoológico. Mas não é isso que me atrai na cena. Emmi, o animal da foto, tem oito anos. É uma fêmea de lêmure-de-cauda-anelada, que vive no zoológico de Tel-Aviv, em Israel. No domingo (29/03) ela apresentou seu filhote ao mundo pela primeira vez. Mas também não é só isso que despertou meu interesse nesta imagem.
O que me atraiu é o olhar de Emmi. Os olhos exageradamente grandes dos lêmures desapareceram em seu rosto. Seus olhos estão absortos, concentrados, voltados para um único ponto que se tornou o universo dela. É um olhar repleto de amor, carinho, plenitude. Nada, absolutamente nada em volta dela recebe mais atenção do que aquele indefeso e precioso ser vivo em seu colo. Mesmo olhando em outra direção, ela parece estar toda voltada para o filhote. Digo isso porque já vi o mesmo olhar diversas vezes, quando a nossa cadela teve filhotes. Sempre me impressionou. É o supra-sumo da condição de mãe.
Quando vejo como os humanos tratam seus “filhotes”, vejo no olhar de Emmi uma lição que precisamos aprender. Ao ver o que se faz com crianças nas sociedades ditas humanas, minha alma cora de vergonha. Já dizia o historiador Eduardo Galeano: Se a história da humanidade fosse narrada do ponto-de-vista das crianças, teríamos uma imensa história de horror para contar. Não tem como negar: elas são as maiores vítimas nas guerras, na fome, nas epidemias e nas conquistas. Elas são os alvos principais de abusos de pais que descarregam nelas sua frustração ou de adultos que abusam delas em nome do seu sórdido prazer pedófilo e de suas taras.
Que o olhar de Emmi nos inspire. Não nos calemos diante do sofrimento das crianças. Não viremos o rosto diante da violência contra os pequenos. Não desviemos nossos olhares diante da imagem do abandono das crianças. Não tapemos nossos ouvidos ante o choro indefeso. As crianças do mundo precisam de Emmis, capazes de inspirar aconchego, confiança e acolhimento.

Quinze anos após o genocídio de Ruanda


Um dos filmes mais impressionantes que já vi, reflete a mais crua realidade de que é capaz a insanidade humana. Em pouco mais de 100 dias, os hutus “abateram” (esta é a palavra mais adequada), a golpes de facão, um milhão de tutsis em Ruanda, na África. No mais espetacular sangue frio de que se tem notícia, milhares de vizinhos entraram na casa ao lado e esquartejaram a família inteira, do bebê ao avô. Não havia para onde fugir. As hordas de hutus “enfacãozados” golpeavam tudo que se movia. O nome do filme: Hotel Ruanda. O ano do fatídico genocídio: 1994.
Quinze anos se passaram. Tutsis e hutus são vizinhos novamente, nas ainda profundamente traumatizadas vilas do interior de Ruanda. Fala-se em pacificação, mas a desconfiança mútua ainda é muito grande entre tutsis e hutus. Muitos dos assassinos foram libertados das prisões abarrotadas; mais de 60 mil deles nos últimos anos. Até mesmo os protagonistas de um dos maiores genocídios da humanidade continuam soltos; alguns gozando de boa vida em países da Europa, na Alemanha inclusive.
A campanha de reconciliação, nos posters, dá o recado: “Ruanda, somos você e eu”. A justiça ruandesa concentra seus esforços na reconciliação. Há tantos assassinos (mais do que mortos, porque muitos massacraram em grupo), que seria impossível prender todos nas cadeias já superlotadas. Uma imensa horda jamais foi presa. Quando já havia 200 mil presos, a maioria ainda estava à solta.
Com a idéia de reconciliar a nação, a justiça criou, nas aldeias, os júris gacaca. “Gacaca” significa “campo de relva”. Tradicionalmente, esses júris se reuniam ao ar livre, em áreas gramadas, para resolver pequenas causas. Hoje, os gacacas estão julgando o genocídio. Várias vezes por semana reúnem-se em torno de 12 mil júris gacaca em Ruanda, no maior acontecimento jurídico jamais visto no mundo. Seu objetivo não é prender e castigar. O objetivo é confrontar os milhares de assassinos com seus crimes, arrancar deles uma confissão pública, o paradeiro dos restos mortais das vítimas e um pedido de perdão diante da vila reunida. Somente depois deste pedido é que são declarados livres.
A justiça ruandesa dividiu os crimes em três categorias. Na categoria três estão aqueles que mataram e tomaram posse das propriedades dos tutsis assassinados. Na categoria dois estão aqueles que assassinaram tutsis em obediência a ordens superiores. Na categoria um estão os mandantes, que planejaram e ordenaram o genocídio. Os gacacas tratam dos delitos da categoria três, julgando mais de 800 mil casos, devendo terminar seu trabalho ainda em 2009.
Muitos dos criminosos da categoria um continuam à solta. Para os casos mais graves o responsável é o tribunal de Arusha, na Tanzânia, que julgou somente 30 genocidas em dez anos (a lista dos casos mais graves tem 300 nomes). Seu mandato também se encerra no final deste ano, embora não tenha julgado boa parte dos casos.
A justiça de Ruanda quer terminar os processos, porque nenhum dos comandantes deve escapar ileso. Seria uma atitude fatal para o processo de paz e para o sucesso do processo de reconciliação. Enquanto os mandantes não estiverem atrás das grades, milhares de hutus hoje no exterior se sentem fortes para retomar o genocídio e atacar o governo tutsi no poder em Ruanda.
Entretanto, o maior drama não é a possibilidade de repetição em Ruanda. Aos trancos e barrancos, Ruanda nos dá um belo exemplo de reconciliação. Aliás, depois da África do Sul, com Nelson Mandela reconciliando a nação na qual passou quatro décadas preso por causa do apartheid, o mundo tem aprendido diversas lições acachapantes da África.
Mas o continente esquecido tem diversas situações em que genocídios continuam ocorrendo, quinze anos depois desta história que colocou a humanidade em choque. O número de um milhão já é uma realidade no Sudão, por exemplo. Enquanto isso, o ocidente, rico apesar da recessão, opulento apesar da crise, arrogante apesar da queda do segundo muro da vergonha (o de Wall Street, desta vez!!!!), continua a ignorar solenemente o que acontece na África.

Derrubem todos os muros!


Mais um muro na história da humanidade. Desta vez, na Argentina. Por iniciativa de Gustavo Posse, intendente de San Isidro, na Grande Buenos Aires, foi iniciada a construção de um muro. O objetivo alegado: reduzir a delinquência. A grande verdade: o muro protege os ricos dos pobres. Protestos, polícia e gente com forte espírito de cidadania fizeram a história chegar aos noticiários e impedem a continuação da obra (foto).
Já na idade média os ricos cercavam seus suntuosos castelos com gigantescos muros. Benevolentes, do lado de dentro colocavam artesãos, sacerdotes, comerciantes, caserna e mais uma dúzia de “castas” bem escolhidas. Tudo para que o castelo fosse bem servido. O resto ficava do lado de fora dos portões, à mercê dos inimigos.
O muro é uma proteção. Mas, ao longo de toda a história da humanidade, serviu exclusivamente para separar pessoas. Quase sempre fica bem claro quem é quem e de que lado do muro deve ficar. O menor dos direitos que o muro toma é o de ir e vir. O muro exclui, separa, discrimina, isola, classifica (ato de separar por classes).
Conheci o muro da vergonha em 1988, um ano antes de sua queda. Cercava toda a parte ocidental de Berlim, bem no meio da Alemanha Comunista, que, por sua vez, era separada do resto do mundo ocidental por uma “cortina de ferro”, uma cerca eletrificada, minada e muito bem guardada por milhares de soldados e armas. É uma visão que não se apaga da minha retina. O muro físico caiu, mas ainda há muitos que o reerguem, separando as pessoas por ideologias e ideias.
Os muros físicos são muitos, como o de Berlim (que caiu), o que separa Israel da Palestina (o novo muro da vergonha) e, agora, este em Buenos Aires; ou outros menos famosos no Brasil, separando condomínios de luxo de favelas. Nossas casas estão muito bem muradas e cercadas. Protegem dos ladrões e invasores indesejados. Mas separam os vizinhos, que moram lado a lado por anos a fio e nem se conhecem.
Mas também há muitos muros simbólicos; imaginários, mas tão intransponíveis quanto os de concreto e arame. Há o de Wall Street (que também caiu), que separa os que têm o capital dos que sofrem as consequências do seu uso para o mal. Há o muro do isolamento internacional imposto pelos EUA contra Cuba; imaginário mas intransponível há 50 anos. E há também aqueles que erguemos em nossos corações contra as pessoas que detestamos, que queremos manter longe de nós por qualquer motivo.
O que fazer? Uma lembrança muito forte vem à minha mente, dos tempos do coral do Morro. Cantávamos um belíssimo negro spiritual, cuja letra dizia: “Joshua fit de battle of Jericho, and the walls came a tumbalin’ down”. Vale a pena ouvir (http://www.youtube.com/watch?v=gpzuwzzvoyq). As trombetas de Josué derrubaram os muros de Jericó. Que elas toquem diante de todos os nossos muros, para que sejam derrubados.

O livro de Chávez


Durante oito anos, as relações entre os EUA e a Venezuela foram turbulentas. Chávez odiava Bush e Bush odiava Chávez. Muita gente odeia o Chávez. E mais gente ainda odeia o Bush. Não sei quem dos dois merece mais o resultado do que semeou…

Na minha visão, o Chávez é fruto da nossa conturbada história latino-americana e, ao seu modo, está tentando interferir nos rumos dessa história. Ele brigou com Bush, mas não quer briga de verdade com os EUA. Ele sabe que precisa deles. Afinal, ele viu em Cuba, ao vivo e a cores, onde pode levar um confronto direto. Coitado do povo cubano…

Mas, voltando ao Chávez, ele está de namoro com o Obama. Ele acredita que nem todos os americanos são iguais. Na sua tentativa de mudar as coisas, Chávez deu um livro a Obama. É um livro único, muito especial e antigo: “As Veias Abertas da América Latina”, do escritor e historiador uruguaio Eduardo Galeano. Eu li este livro em 1989.

A primeira edição foi publicada em 1970 e, apesar dos 40 anos e das dezenas de edições do livro, ele é antigo, mas não envelhecido. O presente de Chávez a Obama ressuscitou o livro de Galeano. Na mesma semana, ele saltou para o segundo lugar dos livros mais vendidos pelo site Amazon.com. É uma contribuição significativa, este presente do Chávez. Se Obama ler o livro com genuíno interesse, ele não será mais o mesmo depois da leitura, eu garanto. Se mais latino-americanos o lessem, também nossa história não seria mais a mesma.

Longe dos ranços ideológicos e de toda essa classificação idiota das pessoas em “de esquerda” ou “de direita”, o livro é a mais impressionante lição de história que eu tive na minha vida. É história viva, da qual se participa como se estivesse a acontecer no instante da leitura. É história contada com paixão, em forma de novela, para mudar os acentos, os protagonistas, os heróis. Sai Cortez e entra Montezuma, o imperador asteca. Sai Pizarro e entra Atahualpa, o imperador inca. A estupefação de Cortez diante de Tenochtitlán, a exuberante capital asteca, que é cinco vezes maior e mais organizada que Madri ou o dobro de Cevilha (maior cidade espanhola da época), faz dobrar também o ritmo cardíaco do leitor. Onde aprenderam suas lições os professores de história do ginásio, que não nos contaram nada disso?

“As Veias” é, sobretudo, a história de um saque que jamais terminou, desde 1492 até os nossos dias. Depois de arrasar Tenochtitlán e o império asteca, de colocar de joelhos o majestoso império inca, levando no bico o ingênuo Atahualpa, e de dizimar a metade da população indígena com doenças e armas nos primeiros 50 anos da conquista, os conquistadores passaram a saquear o continente. A “descoberta” vira o que foi realmente: uma impiedosa e interminável conquista.

Na era do renascimento, a América era só mais uma invenção; uma mina a céu aberto. Primeiro saquearam o ouro, as pedras preciosas e a prata, levados em quantidades tão impressionantes que custa a acreditar (e está tudo registrado nos livros dos contadores da época!). Depois, a cana de açúcar, o petróleo, a carne criada nos pampas, o minério de ferro e a bauxita. Hoje, cobiçam a Amazônia e plantam aqui suas indústrias pela mão de obra mais barata e lucros mais animadores. De resto, a eterna relação de dependência foi mantida com o capital, em grande parte, gerado aqui e centuplicado lá. Nossas fortunas financiaram a industrialização da Europa e a fortuna do primeiro mundo. A balança desigual do comércio internacional sempre garantiu que nós ficássemos com o mínimo. Em resumo, para Galeano, nossa riqueza foi justamente a nossa maior desgraça. Tínhamos a mina e viramos só a mão de obra para arrancar do seu interior as riquezas, das quais nunca usufruímos.

“As Veias” é uma patada nisso tudo. E provocou histórias incríveis, como a da moça que lia o livro para sua amiga no ônibus, em Bogotá, e se levantou para ler em voz alta para todos os passageiros. Ou a do estudante argentino que, por não ter dinheiro para comprá-lo, foi lendo o livro entrando de livraria em livraria, em Buenos Aires. Ao mesmo tempo, “os comentários mais favoráveis que o livro recebeu não provêm de nenhum crítico literário de prestígio, mas das ditaduras militares que o elogiaram proibindo-o”, celebra Galeano. Ele foi denunciado como um instrumento de corrupção da juventude.

Leia o livro. Você não será mais o mesmo. Diga Galeano, por que: “Escrevi As Veias Abertas para difundir ideias alheias e experiências próprias que talvez ajudem um pouquinho, com sua medida realista, a resolver as questões que nos perseguem desde sempre: A América Latina é uma região do mundo condenada à humilhação e à pobreza? Condenada por quem? Culpa de Deus? Culpa da natureza? Do clima modorrento? Das raças inferiores? A religião e os costumes? Não será a desgraça um produto da história, feita por homens, e que, portanto, pelos homens pode ser desfeita?”. Ou seja, “este livro é uma busca de chaves da história passada, que contribui para explicar o tempo presente, a partir da base de que a primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la”.

Ao presentear Obama com “As Veias Abertas”, Chávez contribuiu para isso. Se Obama não ler o livro, pelo menos mais alguns conterrâneos latino-americanos passarão a lê-lo. O que não deixa de ser um belo presente…

DEPOIS DE WORMS, A CAÇADA A LUTERO

No último dia da Dieta de Worms, 26 de maio de 1521, já sem a presença de Lutero, foi decretado o Édito de Worms. O documento fora redigido ...