Hans Küng, antigo colega de Ratzinger na Universidade de Tübingen, onde é professor emérito de Teologia Ecumênica, é uma das vozes mais críticas ao papado de Bento XVI e exige um novo concílio para salvar a Igreja católica.
Veneráveis bispos,
Joseph Ratzinger, agora Papa Bento XVI, e eu éramos os mais jovens teólogos no Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965. Agora somos os mais velhos, e os únicos que continuam em plena actividade. Sempre entendi o meu trabalho teológico como sendo um serviço à Igreja Católica Romana. Por esta razão, por ocasião do quinto aniversário da eleição do Papa Bento XVI, faço-lhe este apelo em forma de carta aberta. Faço-o motivado pela minha profunda preocupação acerca da nossa Igreja, que se encontra na pior crise de credibilidade desde a Reforma. Desculpe-me ser na forma de carta aberta; infelizmente, não tenho outra forma de o contatar.
Apreciei muito que o Papa me tenha convidado, a mim que sou abertamente seu crítico, para nos encontrarmos para uma amigável conversa de quatro horas, pouco após ter assumido. Este convite despertou em mim a esperança de que o meu antigo colega da Universidade de Tübingen pudesse encontrar o seu caminho e promover uma contínua renovação da Igreja e uma aproximação ecumênica dentro do espírito do Concílio Vaticano II.
Infelizmente, as minhas esperanças, e as de tantos homens e mulheres católicos engajados, não foram cumpridas. Em minha correspondência subsequente com o Papa apontei-lhe este fato muitas vezes. Não há dúvida de que ele desempenha conscienciosamente os seus deveres diários de Papa, e deu-nos três úteis encíclicas sobre fé, esperança e caridade. Mas quando se trata de enfrentar os grandes desafios do nosso tempo, o seu pontificado desperdiçou mais oportunidades do que aproveitou:
- Perdeu a oportunidade de aproximação às Igrejas protestantes. Em vez disso, tem-lhes sido negado o status de Igrejas no verdadeiro sentido da palavra e, por essa razão, os seus ministros não são reconhecidos e a inter-comunhão não é possível.
- Perdeu a oportunidade de uma reconciliação duradoura com os judeus. Em vez disso, o Papa reintroduziu na liturgia uma oração pré-conciliar pela iluminação dos judeus, recebeu de novo em comunhão com a Igreja bispos notoriamente anti-semitas e cismáticos, e está promovendo abertamente a beatificação do Papa Pio XII, que tem sido acusado de não ter oferecido suficiente proteção aos judeus na Alemanha nazista. A verdade é que Bento vê no judaísmo apenas a raiz histórica do cristianismo; não o toma a sério como uma comunidade religiosa que continua a oferecer o seu próprio caminho para a salvação. A recente comparação entre as atuais críticas que o Papa enfrenta e as campanhas de ódio anti-semita – feita pelo reverendo Raniero Cantalamessa durante uma cerimônia religiosa oficial na sexta-feira de Páscoa no Vaticano – desencadeou uma tempestade de indignação entre os judeus ao redor do mundo.
- Perdeu a oportunidade de dialogar com os muçulmanos numa atmosfera de respeito mútuo. Em vez disso, na sua irrefletida mas sintomática palestra de 2006 em Regensburg, Bento caricaturou o islã como uma religião de violência e desumanidade, atraindo a continuidade da desconfiança muçulmana.
- Perdeu a oportunidade de reconciliação com os povos indígenas colonizados da América Latina. Em vez disso, o Papa afirmou com toda a seriedade que eles estavam “à espera e desejosos” da religião dos seus conquistadores europeus.
- Perdeu a oportunidade de ajudar o povo africano, não permitindo o controlo da natalidade para combater o excesso de população, nem os preservativos para combater a propagação da AIDS.
- Perdeu a oportunidade de fazer as pazes com a ciência moderna, não reconhecendo claramente a teoria da evolução, nem aceitando as pesquisas sobre as células-tronco.
- Perdeu a oportunidade de fazer do espírito do Concílio Vaticano II a bússola para toda a Igreja Católica, incluindo o próprio Vaticano, e assim promovendo as necessárias reformas no seio da Igreja. Este último ponto, respeitáveis bispos, é o mais importante de todos. Vezes sem conta, este Papa acrescentou qualificações aos textos conciliares e interpretou-os de forma contrária ao espírito dos pais da assembleia. Vezes sem conta, tomou expressamente posições contra o Concílio Ecumênico, que, de acordo com a lei canônica, representa a mais alta autoridade na Igreja Católica:
- Recebeu de regresso à Igreja, de forma incondicional, os bispos da tradicionalista Sociedade Pio X – bispos que foram ilegalmente consagrados fora da Igreja Católica e que rejeitam os pontos centrais do Concílio Vaticano II (incluindo a reforma litúrgica, a liberdade religiosa e a aproximação com o judaísmo).
- Promove por todos os meios a medieval missa tridentina e ocasionalmente celebra a eucaristia em latim de costas para a congregação.
- Recusa colocar em prática a aproximação à Igreja Anglicana, que foi inscrita em documentos ecumênicos oficiais pela Comissão Internacional Anglicana-Católica Romana, e em vez disso tem tentado atrair para a Igreja Católica Romana clérigos anglicanos casados, libertando-os da mesma regra de celibato que tem forçado dezenas de milhares de padres católicos romanos a abandonarem os seus lugares.
- Tem ativamente reforçado as correntes anti-conciliares na Igreja, nomeando elementos reacionários para lugares-chaves na Cúria (incluindo a Secretaria de Estado e posições na comissão litúrgica) e nomeando bispos reacionários em todo o mundo.
O Papa Bento XVI parece estar cada vez mais afastado da grande maioria dos membros da Igreja, que cada vez têm menos consideração por Roma e, na melhor das hipóteses, apenas se identificam com a sua paróquia e o seu bispo.
Sei que muitos de vocês estão sentidos com esta situação. Na sua política anti-conciliar, o Papa recebe o apoio total da Cúria Romana. A Cúria faz todos os esforços para rebater as críticas ao episcopado e à Igreja como um todo e para desacreditar os críticos com todos os meios ao seu dispor. Com o regresso à pompa e ao espetáculo atraindo a atenção dos meios de comunicação social, as forças reacionárias em Roma têm tentado mostrar-se perante nós como uma Igreja forte chefiada por um “vigário de Cristo” absolutista que reúne, em suas mãos apenas, os poderes legislativo, executivo e judiciário da Igreja. Mas a política de restauração de Bento XVI falhou. Todas as suas espetaculares aparições, viagens de exibição e declarações públicas falharam, não influenciando as opiniões da maioria dos católicos em assuntos controversos. Isto é especialmente verdade no tocante a temas sobre moral sexual. Até os encontros papais com a juventude, aos quais vão especialmente os grupos conservadores carismáticos, não têm conseguido parar a contínua perda daqueles que abandonam a Igreja, nem têm conseguido atrair mais vocações para o sacerdócio.
Vocês bispos, em particular, têm razões para estar muito pesarosos. Dezenas de milhares de padres têm abandonado o sacerdócio desde o Concílio Vaticano II, a maior parte devido à regra do celibato. Vocações para o sacerdócio, mas também para as ordens religiosas, irmandades e fraternidades laicas estão em baixa – não apenas quantitativamente mas também qualitativamente. Resignação e frustração espalham-se rapidamente, tanto entre o clero como entre os leigos ativos. Muitos sentem que foram abandonados com as suas necessidades pessoais, e muitos estão profundamente preocupados com o estado da Igreja. Em muitas das suas dioceses acontece o mesmo: cada vez mais igrejas vazias, seminários vazios e residências paroquiais vazias. Em muitos países, devido à falta de padres, mais e mais paróquias estão se fundindo, muitas vezes contra a vontade dos seus membros, em unidades pastorais cada vez maiores, nas quais se exige demais dos poucos sacerdotes sobreviventes. Isto é uma reforma de Igreja mais fingida do que real!
E agora, para além de todas essas crises, chega um escândalo de bradar aos céus – a revelação do abuso por parte de clérigos de milhares de crianças e adolescentes, primeiro nos Estados Unidos, depois na Irlanda, na Alemanha e em outros países. E para piorar a situação, a maneira como estes casos têm sido tratados tem levado a uma crise de liderança sem precedentes e a um colapso na confiança na liderança da Igreja.
Não se pode negar o fato de que o esquema em nível mundial de cobertura de casos de crimes sexuais cometidos por clérigos foi idealizado pela Congregação para a Doutrina da Fé sob a direção do cardeal Ratzinger (1981-2005). Durante o reinado do Papa João Paulo II, essa congregação já tinha cuidado de todos esses casos, debaixo de juramento do mais estrito silêncio. O próprio Ratzinger, a 18 de maio de 2001, enviou a todos os bispos um documento solene em que tratava de crimes severos (epistula de delictis gravioribus, no qual os casos de abuso eram selados sob o secretum pontificium), cuja violação poderia originar graves penalidades eclesiásticas. Assim, muitas pessoas, e com razão, esperaram um mea culpa pessoal da parte do antigo prefeito e atual Papa. Em vez disso, o Papa desperdiçou a oportunidade dada pela Semana Santa: no Domingo de Páscoa, teve a sua inocência proclamada urbi et orbi pelo reitor do Colégio Cardinalício.
As consequências de todos estes escândalos para a reputação da Igreja Católica são desastrosas. Importantes líderes religiosos já o admitiram. Numerosos pastores e educadores inocentes e empenhados estão a sofrer debaixo do estigma de suspeição que agora cobre a Igreja. Vocês, reverendos bispos, devem enfrentar a questão: o que acontecerá à nossa Igreja e à diocese de vocês no futuro? Não é minha intenção esboçar um novo programa de reforma da Igreja. Já fiz esse tipo de coisa mais do que o suficiente, antes e depois do concílio. Em vez disso, só quero submeter à sua consideração seis propostas que estou convencido que serão apoiadas por milhões de católicos que não têm voz ativa na atual situação.
1. Não se mantenham em silêncio. Ao ficarem calados em face de tantas e tão sérias queixas, vocês mesmos se sujam de culpa. Quando sentirem que determinadas leis, diretivas e medidas são contra-producentes, digam isso em público. Enviem a Roma não declarações da sua devoção, mas pedidos de reformas!
2. Definam reformas. Demasiados elementos na Igreja e no episcopado queixam-se sobre Roma, mas eles próprios não fazem nada. Quando as pessoas já não vão à igreja numa diocese, quando o padre pouco consegue, quando o público é mantido na ignorância acerca das necessidades do mundo, quando a cooperação ecumênica é reduzida ao mínimo, então a culpa não pode apenas ser atirada para cima de Roma. Bispos, padres, leigos ou leigas – todos podem fazer algo pela renovação da Igreja, dentro das suas esferas de influência, sejam estas grandes ou pequenas. Muitas das grandes realizações que foram conseguidas nas paróquias e na Igreja em geral devem sua origem à iniciativa de um indivíduo ou de um pequeno grupo. Como bispos, vocês devem apoiar iniciativas deste gênero e, especialmente dada a presente situação, dêem respostas às justas queixas dos fiéis.
3. Ajam de forma colegiada. Após um aceso debate e contra a persistente oposição da Cúria, o Concílio Vaticano II decretou a colegialidade do Papa e dos bispos. O fez no sentido dos Atos dos Apóstolos, nos quais Pedro não atuava sozinho sem a assembleia dos apóstolos. Mas na era pós-conciliar o Papa e a Cúria têm ignorado este decreto. Apenas dois anos após o concílio, o Papa Paulo VI publicou uma encíclica defendendo a controversa lei do celibato sem efetuar qualquer consulta aos bispos. Desde então, as políticas papais e o magistério papal têm continuado a desenvolver-se na antiga forma, não colegiada. Mesmo em questões litúrgicas, o Papa reina como um autocrata acima de e contra os bispos. Não se importa de tê-los à sua volta, desde que não sejam mais do que figurantes sem voz ou direito de voto. É por isso, veneráveis bispos, que vocês não devem agir apenas por vocês, mas também em comunidade com os outros bispos, os padres e os homens e mulheres que compõem a Igreja.
4. Obediência incondicional é devida apenas a Deus. Apesar de na vossa consagração episcopal terem tido que efectuar um juramento de obediência incondicional ao Papa, sabeis que tal obediência incondicional nunca pode ser dirigida a qualquer autoridade humana, apenas pode ser dada a Deus. Por esta razão, não deveis sentir que o vosso juramento vos impede de dizer a verdade acerca da actual crise que enfrenta a Igreja, a vossa diocese e o vosso país. O vosso modelo deve ser o apóstolo Paulo, que se atreveu a opor-se a Pedro "na sua presença, pois ele estava manifestamente errado" (Carta aos Gálatas, 2:11)! Pressionar as autoridades romanas dentro do espírito de fraternidade cristã pode ser admissível e mesmo necessário quando elas não conseguem estar à altura do espírito do Evangelho e da sua missão. O uso das línguas vernáculas na liturgia, as mudanças nos regulamentos que regem os casamentos entre pessoas de diferentes religiões, a afirmação da tolerância, da democracia e dos direitos humanos, a abertura a uma aproximação ecumênica, e muitas outras reformas do Vaticano II apenas foram alcançadas devido à tenaz pressão vinda de baixo.
5. Trabalhem em prol de soluções regionais. O Vaticano tem frequentemente feito ouvidos moucos aos bem-fundamentados pedidos do episcopado, dos padres e dos leigos, o que é mais uma razão para se procurar soluções regionais sensatas. Como vocês sabem muito bem, a regra do celibato herdada da Idade Média representa um problema particularmente delicado. No contexto do atual escândalo de abuso por parte de clérigos, a prática tem sido cada vez mais posta em dúvida. Contra a vontade expressa de Roma, uma mudança dificilmente será possível – mas tal não é razão para resignação passiva. Quando um padre, após uma reflexão madura, deseja casar-se, não há razão para que automaticamente se demita do seu lugar, se o seu bispo e a sua paróquia decidirem continuar a apoiá-lo. Diferentes conferências episcopais poderiam dar o exemplo com soluções regionais. No entanto, seria melhor procurar uma solução para toda a Igreja. Assim:
6. Peçam um concílio. Tal como a obtenção de reforma litúrgica, liberdade religiosa, ecumenismo e diálogo inter-religioso exigiu um concílio ecumênico, também agora é necessário um concílio para resolver os problemas que se avolumam dramaticamente e que clamam por uma reforma. No século anterior à Reforma, o Concílio de Constança decretou que os concílios deveriam realizar-se a cada cinco anos, mas a Cúria Romana conseguiu contornar esta regra. É perfeitamente claro que a Cúria Romana, temendo limitações ao seu poder, fará tudo o que estiver ao seu alcance para evitar que um concílio se reúna nas presentes condições. É por isso que está nas mãos de vocês fazer pressão para a convocação de um concílio, ou pelo menos uma assembleia de bispos representativa.
Com a Igreja em profunda crise, este é o meu apelo a vocês, veneráveis bispos. Ponnham para funcionar a autoridade episcopal que foi reafirmada pelo Concílio Vaticano II. Nesta situação de emergência, os olhos do mundo voltam-se na direção de vocês. Inúmeras pessoas já perderam a confiança na Igreja Católica. Apenas reconhecendo aberta e honestamente estes problemas e resolutamente efetivando as necessárias reformas a sua confiança pode ser recuperada. Com o devido respeito, peço a vocês que façam a sua parte – juntamente com os seus irmãos bispos, na medida do possível, mas também sozinhos se assim for necessário – com “intrepidez” apostólica (Atos dos Apóstolos 4.29, 31). Dêem aos seus fieis sinais de esperança e encorajamento, e dêem à nossa Igreja uma perspectiva de futuro.
Com calorosas saudações, em comunhão de fé cristã, seu
Hans Küng
(Fonte: PÚBLICO/The New York Times. Tradução: Eurico Monchique. Adaptação ao português do Brasil: Clovis Lindner)
Veneráveis bispos,
Joseph Ratzinger, agora Papa Bento XVI, e eu éramos os mais jovens teólogos no Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965. Agora somos os mais velhos, e os únicos que continuam em plena actividade. Sempre entendi o meu trabalho teológico como sendo um serviço à Igreja Católica Romana. Por esta razão, por ocasião do quinto aniversário da eleição do Papa Bento XVI, faço-lhe este apelo em forma de carta aberta. Faço-o motivado pela minha profunda preocupação acerca da nossa Igreja, que se encontra na pior crise de credibilidade desde a Reforma. Desculpe-me ser na forma de carta aberta; infelizmente, não tenho outra forma de o contatar.
Apreciei muito que o Papa me tenha convidado, a mim que sou abertamente seu crítico, para nos encontrarmos para uma amigável conversa de quatro horas, pouco após ter assumido. Este convite despertou em mim a esperança de que o meu antigo colega da Universidade de Tübingen pudesse encontrar o seu caminho e promover uma contínua renovação da Igreja e uma aproximação ecumênica dentro do espírito do Concílio Vaticano II.
Infelizmente, as minhas esperanças, e as de tantos homens e mulheres católicos engajados, não foram cumpridas. Em minha correspondência subsequente com o Papa apontei-lhe este fato muitas vezes. Não há dúvida de que ele desempenha conscienciosamente os seus deveres diários de Papa, e deu-nos três úteis encíclicas sobre fé, esperança e caridade. Mas quando se trata de enfrentar os grandes desafios do nosso tempo, o seu pontificado desperdiçou mais oportunidades do que aproveitou:
- Perdeu a oportunidade de aproximação às Igrejas protestantes. Em vez disso, tem-lhes sido negado o status de Igrejas no verdadeiro sentido da palavra e, por essa razão, os seus ministros não são reconhecidos e a inter-comunhão não é possível.
- Perdeu a oportunidade de uma reconciliação duradoura com os judeus. Em vez disso, o Papa reintroduziu na liturgia uma oração pré-conciliar pela iluminação dos judeus, recebeu de novo em comunhão com a Igreja bispos notoriamente anti-semitas e cismáticos, e está promovendo abertamente a beatificação do Papa Pio XII, que tem sido acusado de não ter oferecido suficiente proteção aos judeus na Alemanha nazista. A verdade é que Bento vê no judaísmo apenas a raiz histórica do cristianismo; não o toma a sério como uma comunidade religiosa que continua a oferecer o seu próprio caminho para a salvação. A recente comparação entre as atuais críticas que o Papa enfrenta e as campanhas de ódio anti-semita – feita pelo reverendo Raniero Cantalamessa durante uma cerimônia religiosa oficial na sexta-feira de Páscoa no Vaticano – desencadeou uma tempestade de indignação entre os judeus ao redor do mundo.
- Perdeu a oportunidade de dialogar com os muçulmanos numa atmosfera de respeito mútuo. Em vez disso, na sua irrefletida mas sintomática palestra de 2006 em Regensburg, Bento caricaturou o islã como uma religião de violência e desumanidade, atraindo a continuidade da desconfiança muçulmana.
- Perdeu a oportunidade de reconciliação com os povos indígenas colonizados da América Latina. Em vez disso, o Papa afirmou com toda a seriedade que eles estavam “à espera e desejosos” da religião dos seus conquistadores europeus.
- Perdeu a oportunidade de ajudar o povo africano, não permitindo o controlo da natalidade para combater o excesso de população, nem os preservativos para combater a propagação da AIDS.
- Perdeu a oportunidade de fazer as pazes com a ciência moderna, não reconhecendo claramente a teoria da evolução, nem aceitando as pesquisas sobre as células-tronco.
- Perdeu a oportunidade de fazer do espírito do Concílio Vaticano II a bússola para toda a Igreja Católica, incluindo o próprio Vaticano, e assim promovendo as necessárias reformas no seio da Igreja. Este último ponto, respeitáveis bispos, é o mais importante de todos. Vezes sem conta, este Papa acrescentou qualificações aos textos conciliares e interpretou-os de forma contrária ao espírito dos pais da assembleia. Vezes sem conta, tomou expressamente posições contra o Concílio Ecumênico, que, de acordo com a lei canônica, representa a mais alta autoridade na Igreja Católica:
- Recebeu de regresso à Igreja, de forma incondicional, os bispos da tradicionalista Sociedade Pio X – bispos que foram ilegalmente consagrados fora da Igreja Católica e que rejeitam os pontos centrais do Concílio Vaticano II (incluindo a reforma litúrgica, a liberdade religiosa e a aproximação com o judaísmo).
- Promove por todos os meios a medieval missa tridentina e ocasionalmente celebra a eucaristia em latim de costas para a congregação.
- Recusa colocar em prática a aproximação à Igreja Anglicana, que foi inscrita em documentos ecumênicos oficiais pela Comissão Internacional Anglicana-Católica Romana, e em vez disso tem tentado atrair para a Igreja Católica Romana clérigos anglicanos casados, libertando-os da mesma regra de celibato que tem forçado dezenas de milhares de padres católicos romanos a abandonarem os seus lugares.
- Tem ativamente reforçado as correntes anti-conciliares na Igreja, nomeando elementos reacionários para lugares-chaves na Cúria (incluindo a Secretaria de Estado e posições na comissão litúrgica) e nomeando bispos reacionários em todo o mundo.
O Papa Bento XVI parece estar cada vez mais afastado da grande maioria dos membros da Igreja, que cada vez têm menos consideração por Roma e, na melhor das hipóteses, apenas se identificam com a sua paróquia e o seu bispo.
Sei que muitos de vocês estão sentidos com esta situação. Na sua política anti-conciliar, o Papa recebe o apoio total da Cúria Romana. A Cúria faz todos os esforços para rebater as críticas ao episcopado e à Igreja como um todo e para desacreditar os críticos com todos os meios ao seu dispor. Com o regresso à pompa e ao espetáculo atraindo a atenção dos meios de comunicação social, as forças reacionárias em Roma têm tentado mostrar-se perante nós como uma Igreja forte chefiada por um “vigário de Cristo” absolutista que reúne, em suas mãos apenas, os poderes legislativo, executivo e judiciário da Igreja. Mas a política de restauração de Bento XVI falhou. Todas as suas espetaculares aparições, viagens de exibição e declarações públicas falharam, não influenciando as opiniões da maioria dos católicos em assuntos controversos. Isto é especialmente verdade no tocante a temas sobre moral sexual. Até os encontros papais com a juventude, aos quais vão especialmente os grupos conservadores carismáticos, não têm conseguido parar a contínua perda daqueles que abandonam a Igreja, nem têm conseguido atrair mais vocações para o sacerdócio.
Vocês bispos, em particular, têm razões para estar muito pesarosos. Dezenas de milhares de padres têm abandonado o sacerdócio desde o Concílio Vaticano II, a maior parte devido à regra do celibato. Vocações para o sacerdócio, mas também para as ordens religiosas, irmandades e fraternidades laicas estão em baixa – não apenas quantitativamente mas também qualitativamente. Resignação e frustração espalham-se rapidamente, tanto entre o clero como entre os leigos ativos. Muitos sentem que foram abandonados com as suas necessidades pessoais, e muitos estão profundamente preocupados com o estado da Igreja. Em muitas das suas dioceses acontece o mesmo: cada vez mais igrejas vazias, seminários vazios e residências paroquiais vazias. Em muitos países, devido à falta de padres, mais e mais paróquias estão se fundindo, muitas vezes contra a vontade dos seus membros, em unidades pastorais cada vez maiores, nas quais se exige demais dos poucos sacerdotes sobreviventes. Isto é uma reforma de Igreja mais fingida do que real!
E agora, para além de todas essas crises, chega um escândalo de bradar aos céus – a revelação do abuso por parte de clérigos de milhares de crianças e adolescentes, primeiro nos Estados Unidos, depois na Irlanda, na Alemanha e em outros países. E para piorar a situação, a maneira como estes casos têm sido tratados tem levado a uma crise de liderança sem precedentes e a um colapso na confiança na liderança da Igreja.
Não se pode negar o fato de que o esquema em nível mundial de cobertura de casos de crimes sexuais cometidos por clérigos foi idealizado pela Congregação para a Doutrina da Fé sob a direção do cardeal Ratzinger (1981-2005). Durante o reinado do Papa João Paulo II, essa congregação já tinha cuidado de todos esses casos, debaixo de juramento do mais estrito silêncio. O próprio Ratzinger, a 18 de maio de 2001, enviou a todos os bispos um documento solene em que tratava de crimes severos (epistula de delictis gravioribus, no qual os casos de abuso eram selados sob o secretum pontificium), cuja violação poderia originar graves penalidades eclesiásticas. Assim, muitas pessoas, e com razão, esperaram um mea culpa pessoal da parte do antigo prefeito e atual Papa. Em vez disso, o Papa desperdiçou a oportunidade dada pela Semana Santa: no Domingo de Páscoa, teve a sua inocência proclamada urbi et orbi pelo reitor do Colégio Cardinalício.
As consequências de todos estes escândalos para a reputação da Igreja Católica são desastrosas. Importantes líderes religiosos já o admitiram. Numerosos pastores e educadores inocentes e empenhados estão a sofrer debaixo do estigma de suspeição que agora cobre a Igreja. Vocês, reverendos bispos, devem enfrentar a questão: o que acontecerá à nossa Igreja e à diocese de vocês no futuro? Não é minha intenção esboçar um novo programa de reforma da Igreja. Já fiz esse tipo de coisa mais do que o suficiente, antes e depois do concílio. Em vez disso, só quero submeter à sua consideração seis propostas que estou convencido que serão apoiadas por milhões de católicos que não têm voz ativa na atual situação.
1. Não se mantenham em silêncio. Ao ficarem calados em face de tantas e tão sérias queixas, vocês mesmos se sujam de culpa. Quando sentirem que determinadas leis, diretivas e medidas são contra-producentes, digam isso em público. Enviem a Roma não declarações da sua devoção, mas pedidos de reformas!
2. Definam reformas. Demasiados elementos na Igreja e no episcopado queixam-se sobre Roma, mas eles próprios não fazem nada. Quando as pessoas já não vão à igreja numa diocese, quando o padre pouco consegue, quando o público é mantido na ignorância acerca das necessidades do mundo, quando a cooperação ecumênica é reduzida ao mínimo, então a culpa não pode apenas ser atirada para cima de Roma. Bispos, padres, leigos ou leigas – todos podem fazer algo pela renovação da Igreja, dentro das suas esferas de influência, sejam estas grandes ou pequenas. Muitas das grandes realizações que foram conseguidas nas paróquias e na Igreja em geral devem sua origem à iniciativa de um indivíduo ou de um pequeno grupo. Como bispos, vocês devem apoiar iniciativas deste gênero e, especialmente dada a presente situação, dêem respostas às justas queixas dos fiéis.
3. Ajam de forma colegiada. Após um aceso debate e contra a persistente oposição da Cúria, o Concílio Vaticano II decretou a colegialidade do Papa e dos bispos. O fez no sentido dos Atos dos Apóstolos, nos quais Pedro não atuava sozinho sem a assembleia dos apóstolos. Mas na era pós-conciliar o Papa e a Cúria têm ignorado este decreto. Apenas dois anos após o concílio, o Papa Paulo VI publicou uma encíclica defendendo a controversa lei do celibato sem efetuar qualquer consulta aos bispos. Desde então, as políticas papais e o magistério papal têm continuado a desenvolver-se na antiga forma, não colegiada. Mesmo em questões litúrgicas, o Papa reina como um autocrata acima de e contra os bispos. Não se importa de tê-los à sua volta, desde que não sejam mais do que figurantes sem voz ou direito de voto. É por isso, veneráveis bispos, que vocês não devem agir apenas por vocês, mas também em comunidade com os outros bispos, os padres e os homens e mulheres que compõem a Igreja.
4. Obediência incondicional é devida apenas a Deus. Apesar de na vossa consagração episcopal terem tido que efectuar um juramento de obediência incondicional ao Papa, sabeis que tal obediência incondicional nunca pode ser dirigida a qualquer autoridade humana, apenas pode ser dada a Deus. Por esta razão, não deveis sentir que o vosso juramento vos impede de dizer a verdade acerca da actual crise que enfrenta a Igreja, a vossa diocese e o vosso país. O vosso modelo deve ser o apóstolo Paulo, que se atreveu a opor-se a Pedro "na sua presença, pois ele estava manifestamente errado" (Carta aos Gálatas, 2:11)! Pressionar as autoridades romanas dentro do espírito de fraternidade cristã pode ser admissível e mesmo necessário quando elas não conseguem estar à altura do espírito do Evangelho e da sua missão. O uso das línguas vernáculas na liturgia, as mudanças nos regulamentos que regem os casamentos entre pessoas de diferentes religiões, a afirmação da tolerância, da democracia e dos direitos humanos, a abertura a uma aproximação ecumênica, e muitas outras reformas do Vaticano II apenas foram alcançadas devido à tenaz pressão vinda de baixo.
5. Trabalhem em prol de soluções regionais. O Vaticano tem frequentemente feito ouvidos moucos aos bem-fundamentados pedidos do episcopado, dos padres e dos leigos, o que é mais uma razão para se procurar soluções regionais sensatas. Como vocês sabem muito bem, a regra do celibato herdada da Idade Média representa um problema particularmente delicado. No contexto do atual escândalo de abuso por parte de clérigos, a prática tem sido cada vez mais posta em dúvida. Contra a vontade expressa de Roma, uma mudança dificilmente será possível – mas tal não é razão para resignação passiva. Quando um padre, após uma reflexão madura, deseja casar-se, não há razão para que automaticamente se demita do seu lugar, se o seu bispo e a sua paróquia decidirem continuar a apoiá-lo. Diferentes conferências episcopais poderiam dar o exemplo com soluções regionais. No entanto, seria melhor procurar uma solução para toda a Igreja. Assim:
6. Peçam um concílio. Tal como a obtenção de reforma litúrgica, liberdade religiosa, ecumenismo e diálogo inter-religioso exigiu um concílio ecumênico, também agora é necessário um concílio para resolver os problemas que se avolumam dramaticamente e que clamam por uma reforma. No século anterior à Reforma, o Concílio de Constança decretou que os concílios deveriam realizar-se a cada cinco anos, mas a Cúria Romana conseguiu contornar esta regra. É perfeitamente claro que a Cúria Romana, temendo limitações ao seu poder, fará tudo o que estiver ao seu alcance para evitar que um concílio se reúna nas presentes condições. É por isso que está nas mãos de vocês fazer pressão para a convocação de um concílio, ou pelo menos uma assembleia de bispos representativa.
Com a Igreja em profunda crise, este é o meu apelo a vocês, veneráveis bispos. Ponnham para funcionar a autoridade episcopal que foi reafirmada pelo Concílio Vaticano II. Nesta situação de emergência, os olhos do mundo voltam-se na direção de vocês. Inúmeras pessoas já perderam a confiança na Igreja Católica. Apenas reconhecendo aberta e honestamente estes problemas e resolutamente efetivando as necessárias reformas a sua confiança pode ser recuperada. Com o devido respeito, peço a vocês que façam a sua parte – juntamente com os seus irmãos bispos, na medida do possível, mas também sozinhos se assim for necessário – com “intrepidez” apostólica (Atos dos Apóstolos 4.29, 31). Dêem aos seus fieis sinais de esperança e encorajamento, e dêem à nossa Igreja uma perspectiva de futuro.
Com calorosas saudações, em comunhão de fé cristã, seu
Hans Küng
(Fonte: PÚBLICO/The New York Times. Tradução: Eurico Monchique. Adaptação ao português do Brasil: Clovis Lindner)
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