Antes de qualquer outra afirmação contaminada – como quase
tudo que a Globo e a grande imprensa brasileira vem dizendo desde ontem, às
16h30min, após circularem as primeiras notícias da morte de Hugo Chávez – deve ser
dito que o povo venezuelano perdeu um líder como jamais teve. Hoje, em qualquer
lugar do mundo tão infestado das notícias que privilegiam as grandes nações, as
pessoas sabem quem foi este homem e sabem ao menos alguma coisa sobre a
Venezuela. Chávez marcou a sua passagem, deixou muito claro qual era o seu
programa, a sua ideologia e os seus objetivos. Ele nunca se escondeu atrás de
cortinas diplomáticas ou de fachadas.
Como tal, foi um homem sempre muito claro, transparente e “Durchschaubar”.
Ao contrário da maioria de nós, que nunca nos manifestamos de peito aberto e
somos dissimulados e até apegados à mentira...
Para muita gente ele era um louco, um déspota,
antidemocrático; ou seja, mais um “caudilho” latino-americano, como os muitos
que já tivemos. Mas essa é uma descrição, no mínimo, reducionista do que foi
Chávez e do que ele representou para o sofrido povo simples da ponta superior
da América do Sul. Ele foi um pai, um mestre, um ídolo e um líder como poucos,
que não temia qualquer inimigo ou adversário, que dava o sangue pela pátria e
por seus ideais, que, enfim, vestia a camiseta, como quase ninguém consegue tão
intensamente, seja num governo de esquerda ou de direita.
Por isso, quase tudo que a grande imprensa disse a respeito
dele está profundamente contaminado por um ranço preconceituoso e desgastado
como discurso político; o mesmo ranço que contamina muitos discursos sobre
Morales, Corrêa, Mujica, Lula ou Dilma. A cartilha dos que defendem o povo
simples e pobre não interessa a quem está no topo da pirâmide latino-americana.
Quem fala a favor deles é malvisto, implacavelmente e sempre. Há uma espécie de
acordo mínimo no sentido de desfazer, desconstruir e ridicularizar gente assim.
Contra eles, a nossa sociedade assumiu abertamente o Complexo Geni, sempre com
bosta na mão, pronta para atirar.
Certo. Chávez era atrapalhado, populista, meio louco,
narcisista e cheio de vícios de um modo de política que já não serve no perfil
das nações do século 21.
Mas tudo aquilo que resume o perfil do seu principal “Feindbild”,
ou seja, os EUA e sua asquerosa política de ingerência nos assuntos de qualquer
nação que não dance segundo sua música, também não merece nenhum respeito. Chávez
podia estar errado em muita coisa e, talvez, até no modo de fazer as coisas.
Mas ele estava 100% certo numa coisa: os EUA “tem cheiro de enxofre”.
Comporta-se como uma nação demoníaca, acima do bem, do mal, de Deus e do diabo.
Os americanos perderam absolutamente tudo nos últimos anos, mas não perdem o
topete. Nisso, concordamos com Chávez.
De outro lado, sua classificação de caudilho é trôpega. Não
temos, todos, os nossos caudilhos? A própria Globo não tinha Roberto Marinho?
Acaso o nome Sirotzky não tem o mesmo peso na RBS? Ou Edir Macedo na Record? O
Papa Bento XVI, tão polêmico e concentrador quanto Chávez, não deveria ser
classificado de caudilho também (acaso não largou o papado somente por conta de
sentir-se muito fraco para continuar no poder, embora todos saibam que, morando
dentro do Vaticano, vai continuar sendo uma pedra no sapato do futuro
pontífice)?
Hugo Chávez demorará para ser esquecido na Venezuela. Há uma
nação de órfãos ali hoje. Choram a sua morte (indevidamente precoce, aos 58
anos!) como nós choramos a morte de Ayrton Senna.
Hugo Chávez ajudou a pavimentar um perfil de maior independência
e respeitabilidade para a América Latina, no sentido de dizer que nós não somos
“gentalha”. Exigimos respeito por nossa autodeterminação. Ele fará falta. Mesmo
com sua fanfarronice e postura folclórica. No mínimo, era um legítimo
representante da luta por mais justiça social, num continente historicamente
dominado por coronéis, barões, oligarquias e famílias que sempre fizeram de
tudo para não partilhar nem o poder nem a riqueza. E na Venezuela esta era uma
realidade particularmente impregnada no tecido social.
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