terça-feira, 17 de maio de 2011

Gente tratada como ratos


por Luana Diana dos Santos

Domingo. Final do campeonato estadual entre o Galo Mineiro, meu time do coração, e o Cruzeiro, nosso maior rival. Enquanto almoçava, acompanhava pelo rádio os últimos detalhes do clássico. A transmissão foi interrompida com a notícia de que moradores de rua do Santa Amélia, bairro de classe média de Belo Horizonte, haviam sido envenenados. Sem acreditar no que acabara de ouvir, acessei a internet na tentativa de descobrir o que realmente havia acontecido. Para minha tristeza, era tudo verdade.

As notícias davam conta de que nove mendigos, entre eles uma mulher, haviam bebido cachaça misturada com chumbinho. Felizmente todos foram socorridos a tempo e não correm risco de morte. Segundo testemunhas, no mês anterior houvera outra tentativa de extermínio. Foi oferecido aos moradores de rua comida envenenada, mas desconfiados, não chegaram a consumir o alimento. No dia seguinte, um cachorro apareceu morto após ingerir a refeição.

Num ano marcado pelas declarações absurdas de Bolsonaro e Rafael Bastos, nenhum fato causou-me tanta consternação quanto o episódio envolvendo os moradores de rua. Alguns podem citar o massacre de Realengo, mas na escola do Rio, ficou comprovado que Wellington de Oliveira, autor dos disparos, possuía distúrbios mentais. O algoz da do Santa Amélia agiu em sã consciência e de forma premeditada.

Não me restam dúvidas de que o autor do crime sabia que o vício de álcool e drogas acomete boa parte daqueles que fazem das ruas sua morada. Um estudo realizado no ano passado pela FIPE – Fundação Instituto Pesquisas Econômicas de São Paulo revelou que 3 em cada 4 moradores de rua consomem entorpecentes. Por muito pouco, não foi um crime perfeito. Até o momento, ninguém foi preso.

Vale lembrar que “caçar” mendigos é uma prática antiga no Brasil. Nos anos de 1930, sob a ideologia do “movimento higienista”, a população de rua foi duramente perseguida. Era preciso dar ao paísl ares europeus, e uma das formas de alcançar tal intento seria confinar a classe pobre em regiões distantes dos centros urbanos. Trazendo a questão para a contemporaneidade, quem não se lembra do índio Galdino, queimado por jovens em Brasília em 1997? Recorri a minha caixa de recortes de jornais, e encontrei uma reportagem da Folha de fevereiro de 2007, onde lia-se: “Praça da República tem bancos antimendingos”. Coisas do Kassab. Serra criou medidas com a mesma finalidade. Somente no ano passado, 32 moradores de rua foram assassinados em Maceió.

Em Belo Horizonte, a população de rua aumenta a cada ano. Pouco se tem feito para solucionar o problema. Não faz muito tempo o jornal Estado de Minas estampou na capa que “os moradores de rua estavam tomando conta da Savassi”. Explico. A Savassi é uma das regiões mais nobres de Belo Horizonte. Daí a preocupação do jornal. Com a proximidade da Copa do Mundo, estejamos preparados para mais faxina nas ruas. As cidades precisarão estar livres dessa gente diferenciada.

A final do campeonato mineiro perdeu toda importância. Passei o dia remoendo esse caso. Fiquei imaginando como uma pessoa oferece veneno à outra, como se estivesse partilhando água ou comida. À noite, ao passar pelas ruas do centro de BH, avistei do ônibus uma fila imensa de mendigos. Recebi um alento. Um casal distribuía sopa para homens, mulheres e crianças. Agora, não me interessa saber se essa atitude é a mais acertada. Fiquei um pouco mais aliviada ao perceber que ainda existem pessoas capazes de enxergar o outro como um semelhante, e não como ratos que precisam ser exterminados.

Luana Diana dos Santos é professora e historiadora da Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais (Publicado no Viomundo, blog de Luiz Carlos Azenha - http://www.viomundo.com.br/)

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