segunda-feira, 18 de julho de 2011

A Igreja e a homossexualidade: um novo caso Galileu

Reproduzo, a seguir, um texto com argumentos expressivos sobre a questão da Bíblia e da homossexualidade. O artigo foi publicado no site Lupa Protestante por Juan Sánchez Nuñez e que eu tomei a liberdade de traduzir para o português. A sua leitura é indispensável para o bom debate do tema. Publico-o como uma contribuição de peso para o debate do polêmico tema. Boa leitura.

Levei muito tempo pensando em escrever este artigo, mas foi o extraordinário testemunho de uma mãe cristã evangélica que acabou de me convencer. Seu sofrimento e, sobretudo, seu esforço por compreender e aceitar seu filho, são extraordinários, e nos mostram do que é capaz o amor.

Uma mãe de três filhos, aos quais educou na mesma fé, nos mesmos valores, com o mesmo amor, e que descobre assombrada o sofrimento que durante anos tem padecido um does por reconhecer-se e aceitar-se homossexual. Exclama essa mãe angustiada: evidentemente meu filho não escolheu ser homossexual, ninguém escolhe o sofrimento, ninguém escolhe ser rechaçado, depreciado, acusado de pecador, denegrido por ser um pervertido; ninguém escolhe esta marginalização e esta humilhação.

E esta nossa irmã tem razão. Ninguém escolhe viver sendo constantemente denegrido e depreciado; mas é mais, querida irmã, e creio que isto é fundamental: ninguém escolhe sua condição sexual, nem o homossexual nem o heterossexual. E esta afirmação é a que eu gostaria de abordar neste artigo, porque creio que é a chave para definir-se em um sentido o em outro. Creio que a recusa desta afirmação é o que está fazendo com que muitas igrejas sejam vistas por grande parte da nossa sociedade como atrasadas e sectárias, e consideradas como grupos de pessoas que ignoram os avanços fundamentais da ciência.

Se, e por isso titulei assim o meu artigo, porque creio que o que divide tão profundamente as igrejas evangélicas quanto à avaliação da homossexualidade, não é o que diz a Bíblia, mas o que diz a ciência. E no fundo, nossa postura a favor ou contra se define mais por nosso conhecimento científico do que por nosso conhecimento bíblico. Daí que estamos, como indico no título, ante um novo “caso Galileu”.

Hoje em dia ninguém pensa que a terra seja o centro do universo, e que o sol, os planetas e o resto das estrelas girem ao seu redor. Quem afirma isto, simplesmente é considerado um ignorante ou maluco. E sem dúvida, chegar até aqui custou muitíssimo sofrimento. Galileu foi condenado, não só pela inquisição da igreja católico-romana, mas também pelas igrejas da reforma, pois ninguém estava disposto a aceitar que a Bíblia poderia equivocar-se, era a ciência que estava errada.

Esse conflito nos ajudou a interpretar melhor a Bíblia e a não ver na ciência um inimigo de nossa fé. Hoje em dia ninguém duvida de que a terra gira ao redor do sol; e ninguém faz uma leitura literal dos textos bíblicos que afirmam o contrário; leva-se em conta o gênero literário dos mesmos e a natureza da linguagem teológica, e se distingue muito bem o tipo de verdade que nos comunicam, que é uma verdade de salvação e não uma verdade científica: não é certo que o sol se deteve para que Israel vencesse seus inimigos (em todo caso se teria que haver detido o movimento de rotação da terra sobre o seu eixo, coisa que o autor do texto ignorava); mas é certo que Deus salvou Israel e esteve a seu lado de maneira extraordinária em todas as circunstâncias adversas de sua história.

As Testemunhas de Jeová têm outro “caso Galileu” com as transfusões de sangue. Alguns fazem uma leitura literal dos textos bíblicos referentes à importância do sangue para a vida humana, em clara contradição com o que diz a ciência moderna: que a vida humana não está em nenhum fluido corporal, mas em todo o corpo humano; uma vida humana que é mais que matéria, é também e fundamentalmente espírito. Quando esses textos bíblicos foram escritos, não se sabia que o sangue circulava pelo corpo, nem se sabia até muitos séculos depois, e muito menos os autores imaginavam que poderiam realizar-se transfusões de sangue. Quando ficou claro para a sociedade a informação de que tal crença coloca em risco a vida humana, gerou uma recusa frontal e absoluta, e as Testemunhas de Jeová são vistos como pessoas retrógradas, ignorantes e sectárias, com uma visão da vida totalmente defasada e perigosa.

Creio que com a homossexualidade estamos ante outro “caso Galileu”. E me explico. Hoje em dia ciência médica, biológica, psiquiátrica, etc, nos diz que a homossexualidade é uma condição sexual e não uma opção sexual. E esta distinção é fundamental. A homossexualidade no é uma orientação sexual eleita por uma pessoa, mas recebida pela mesma, exatamente como acontece com a heterossexualidade. Hoje a ciência nos diz que na orientação sexual de uma pessoa intervêm fatores genéticos, ambientais, sociais, educacionais, etc. e que quando esta orientação amadureceu, deve ser plenamente aceita, sem nenhuma reserva, para que seja possível um desenvolvimento equilibrado da personalidade.

Esta visão da homossexualidade é a que está por detrás das leis que distintos Estados têm aprovado, reconhecendo igualdade de direitos aos homossexuais e permitindo-lhes inclusive o matrimônio. Leis que põem fim a uma discriminação e a uma perseguição e desprezo que os homossexuais têm suportado durante séculos. Hoje em dia o homossexual é visto em nossa sociedade como uma pessoa, não como alguém que padece uma enfermidade ou que fez uma opção sexual pervertida. Pensar assim só é possível se ignoramos tudo o que a ciência moderna nos tem ajudado a entender sobre a homossexualidade.

A homossexualidade começou a ser estudada pela ciência médica no final do século XIX e, claro está, era vista como uma patologia, uma enfermidade, uma opção do indivíduo contra a sua natureza. (Permitam-me abrir um parêntesis. Hoje em dia a ciência nos diz que a homossexualidade é tão natural como a heterossexualidade, e que não só acontece entre humanos, mas entre uma grande diversidade de animais: golfinhos, cervos, chimpanzés, elefantes, aves, insetos, etc.).

Pois bem, a ciência começou estudando a homossexualidade como uma enfermidade, e foram necessários muitos estudos a favor e contra, muito debate científico, com ampla participação de todos os agentes sociais, das igrejas, de distintas organizações de todo tipo, etc. para que mudasse radicalmente o modo de avaliar a homossexualidade. A primeira associação científica que eliminou a homossexualidade da lista de enfermidades foi a prestigiosa Associação de Psiquiatria Americana (APA), em 1974, e em seu meio começou uma “guerra” do sector minoritário para que voltasse a incluí-la na lista de transtornos, patologias o enfermidades. Não se conseguiu, ao contrário, em 1986 foi ratificada essa decisão aprovada em 1974 pela maioria de seus membros.

A partir dos últimos anos do século XX temos assistido a declarações similares de diversas organizações científicas. A Organização Mundial da Saúde eliminou em 1990 a homossexualidade de sua lista de Enfermidades e Outros Problemas de Saúde; a Associação Médica Norteamericana, A Associação de Psicologia Norteamericana, etc. têm atuado da mesma maneira. Mas não só os profissionais da ciência, mas também as leis e os governos dos países de nosso entorno social e cultural, corroboram esta visão da homossexualidade e adotam as mesmas medidas que a Organização Mundial da Saúde. Assim o fez o Reino Unido em 1994, ou a Sociedade Chinesa de Psiquiatria em 2001, etc.

Em nossa sociedade a homossexualidade é vista como uma condição sexual, não como uma opção sexual; e portanto o homossexual tem os mesmos direitos e deveres que o heterossexual de viver sua sexualidade de uma maneira plena e enriquecedora. A condição sexual do homossexual não pode ser objeto de discriminação nem de menosprezo de nenhum tipo, pois seria como discriminar o desprezar a alguém pela cor de sua pele ou por sua etnia. Creio que nossa sociedade está horrorizada com a discriminação e a perseguição de que foram vítimas os negros, os judeus, etc. por sua condição étnica; do mesmo modo que todavia, em muitas sociedades, são menosprezados e marginados os homossexuais por sua condição sexual.

E agora vem “a grande pergunta” de nossas igrejas: E o que diz a Bíblia?

E a resposta é clara e redonda: nada, absolutamente nada; A Bíblia não diz nada da homossexualidade, pois quando foi escrita se desconhecia que existia. A Bíblia não diz nada da condição homossexual, como tampouco diz nada da circulação do sangue, nem diz que o sol gire ao redor da terra, a não ser numa linguagem coloquial e não científica.

A Bíblia não fala da homossexualidade, A Bíblia fala só de atos homossexuais, e ademais atos homossexuais vistos como manifestação e expressão de uma atitude profunda do coração, atos homossexuais que são fruto da cobiça e da lascívia do ser humano, não manifestação do amor e da ternura entre duas pessoas. Quando foram escritos esses textos, nem sequer podiam imaginar seus autores que os atos homossexuais fossem, tal como os heterossexuais, manifestação do amor e do compromisso entre duas pessoas.

Isto se vê claramente quando os lemos em seu contexto histórico; podemos comprovar então que neles se fala dos atos homossexuais, ou como atos que transgridem as leis de pureza do povo (cf. Lv 15.16-20 e Lv 20.18 antes de ler Lv 20.13, onde se dita pena de morte, tanto ao que tem relações sexuais com mulher no período menstrual, como para o que o faz com outro homem; a razão no primeiro texto que cito, aquele que fala da impureza do sêmen e do sangue); ou como atos realizados em um contexto de egoísmo e autosuficiência humana, de busca de prazeres extremos e de experiências orgiásticas, de situações nas quais os seres humanos desejam transgredir todos os limites e ir além do conhecido em uma corrida desenfreada atrás do prazer e da autosatisfação.

É preciso ter tal contexto bíblico muito presente na hora de ler esses textos, pois resulta uma grande injustiça utilizá-los para condenar os atos homossexuais de uma parelha homossexual que se ama e se respeita; essa utilização seria equivalente à daquele que utilizar a condenação bíblica de promiscuidade e prostituição para condenar os atos sexuais de um casal heterossexual. E não deve ser assim, a Bíblia tem em grande estima os atos sexuais daqueles que se amam e se respeitam.

Gostaria expor brevemente o que disse anteriormente, analisando o que considero mais conhecido, e o que de maneira mais ampla nos fala dos atos homossexuais na sociedade greco-romana do século I, o texto da carta de Paulo aos Romanos, em seu capítulo 1.

É claro o contexto em que Paulo fala destes atos: são manifestação de arrogância dos seres humanos, que em sua rejeição do Criador têm caído na idolatria de si mesmos e na adoração de suas próprias obras, de seus corpos…, e “Deus os têm deixado a mercê de seus baixos instintos, de modo que eles se degradam a si mesmos. Este é o fruto de haver preferido a mentira à verdade de Deus, de haver adorado à criatura em vez de ao Criador” (vs.24-25).

Os destinatários da carta sabiam muito bem de quê falava Paulo. Tanto em Corinto, a partir de onde Paulo escreve, como em Roma, haviam adquirido muita fama os cultos de Mitra, Afrodite, Cibeles, etc. Contavam com muitos santuários e um grande número de fiéis que participavam em ritos orgiásticos com os sacerdotes e sacerdotisas dos mesmos. Nos atos de culto destes santuários era habitual manter relações sexuais com os prostitutos sagrados e participar em atos tanto heterossexuais como homossexuais; e mais, inclusive era habitual que as sacerdotisas utilizassem elementos “fálicos” para penetrar a outras mulheres. É este contexto que Paulo tem em mente quando descreve os atos homossexuais de seus contemporâneos.

São manifestação de idolatria, de um coração entenebrecido que não tem reconhecido seu Criador e “professando ser sábios, se tornaram néscios, e mudaram a gloria do Deus incorruptível por uma imagem em forma de homem corruptível, de aves, de quadrúpedes e de répteis”(vs.22-23). Sim, os templos destas divindades estavam repletos de imagens de deuses, deusas, gatos, chacais, crocodilos, serpentes, Isis, Osíris, Anúbis, etc.

Paulo está fazendo referência a algo muito conhecido em seu meio, a polêmica judaica contra a idolatria e suas consequências. Algo que descreve de maneira muito similar o livro de Provérbios em seus capítulos 13 e 14, livro que não está nas Bíblias protestantes mas nas católicas, escrito uns séculos antes da carta de Paulo e cujo uso era habitual naquela época.

Pois bem, é a idolatria que gera todo tipo de perversões humanas, dirá Paulo: “Por esta razão Deus os entregou a paixões degradantes; porque suas mulheres mudaram a função natural pela que é contra a natureza; e da mesma maneira também os homens, abandonando o uso natural de mulher, se incendeiam em sua luxúria uns com os outros, cometendo atos vergonhosos de homens com homens, e recebendo em si mesmos o castigo correspondente à sua perdição” (vs.26-27).

E não posso deixar de mencionar algo que põe claramente à luz do dia as ideias preconcebidas com que lemos os textos bíblicos. Estou convencido que muitos de nós, quando lemos a primeira parte do texto que citei anteriormente, pensamos que Paulo se está referindo ao lesbianismo. Se lemos que “suas mulheres mudaram a função natural pela que é contra a natureza”, imediatamente pensamos que está condenando atos homossexuais entre mulheres. Pois bem, parece que não é assim. Ao menos durante os primeiros quatro séculos do cristianismo, os que comentam esta passagem não o interpretam assim. Todos os comentários que temos deste texto, de Clemente, de Orígenes, de Agostinho, etc, dizem que Paulo não está falando de lesbianismo, mas de mulheres que têm relações anais com pessoas do sexo oposto.

É imprescindível para interpretar os textos bíblicos ter em conta a sociedade em que foram escritos, seus costumes sexuais, seus ritos sagrados. Era habitual na sociedade greco-romana que muitos homens tinham relações sexuais com varões jovens e esbeltos que estavam a serviço de casa, e descuidavam de suas esposas; algo tão incompreensível para nossa sociedade como esses atos de prostituição sagrada de que temos falado. É imprescindível ter em conta tudo isto para não fazer um uso injusto dos mesmos e condenar inocentes.

Irmãos, a Bíblia não diz nada da condição homossexual, mas tem muito a dizer às pessoas homossexuais, o mesmo que às heterossexuais: que vivam plenamente sua sexualidade, pois é um dom divino a serviço da comunicação humana no amor, no compromisso e no cuidado mútuo.

Quando em nossa sociedade os homossexuais ocupam postos de responsabilidade na Administração de Justiça, no Governo, etc. Quando destacados artistas, atores, cantores, etc. vivem sua condição homossexual com toda naturalidade e sem nenhuma discriminação. Quando nossos governos aprovam leis para que inclusive no exército seja reconhecida a condição homossexual… Quando tudo isto sucede em nossa sociedade, não podemos nós das igrejas seguir falando de opção homossexual e de perversão homossexual, contra o que afirma a ciência, e reconhece a maioria de nossa sociedade.

Se a nossa sociedade age assim, se nossos políticos aprovam estas leis, não é porque sejam uns imorais que não têm em conta o que é bom e justo; mas porque têm aceito o que a ciência diz acerca da homossexualidade e buscam superar a discriminação e a marginalização que têm sofrido durante séculos os nossos irmãos homossexuais.

Creio que também nós das igrejas devemos aceitar o que diz a ciência sobre a homossexualidade; ainda mais quando, como temos visto, a Bíblia não diz absolutamente nada sobre isso. Bem, sim, ela nos anima a respeitar e amar a todo aquele que é desprezado e marginalizado. Mas, por favor irmãos, não incluamos os homossexuais no conjunto dos “pecadores” que devemos amar, NÃO; tal e como creio haver exposto neste artigo, o homossexual é um ser humano que recebeu de Deus sua condição sexual e está chamado a aceitá-la e vivê-la em amor, com seus riscos e suas grandezas, exatamente igual ao heterossexual.

Quanto tempo levará a igreja para reconhecer o que a ciência nos diz acerca da homossexualidade? Quantos “Galileus” terão que arder nas fogueiras de nossas inquisições? Quanta dor nos levará a aceitar que a Bíblia não pode ser utilizada como uma arma de arremesso, como um Código Penal? Espero que não leve tanto tempo, até que nossa sociedade termine por considerar-nos uma seita, e não seja capaz de escutar de nós o mensagem de vida plena que só a fé em Jesus Cristo torna possível.

2 comentários:

  1. Pastor Clóvis, boa tarde!

    Eu que sou um luterano desgarrado - pois em crença tornei-me kardecista, mas sou luterano batizado e descendente de pastores - fiquei um pouco orgulhoso de já ter pertencido a esta agremiação religiosa após ler seu blog e seus artigos contra o preconceito.

    Estou preparando uma palestra sobre homossexualidade e religiões, e encontrei teu blog e teu artigo sobre a carta divulgada pelo pastor Friedrich acerca da decisão do STF, e fuçando, interessado, cheguei até este post, com a tradução do artigo do padre ou pastor Sánchez Nuñez.

    Que visão maravilhosa! Que religioso fantástico deve ser este espanhol. Este último parágrafo ficará gravado em minha memória.

    Escrevi para o pastor/padre espanhol agradecendo-o, e faço-o agora com você. Obrigado por ter compartilhado!

    Agradeço ainda sobremaneira por seres uma voz de tolerância e amor ao próximo dentro da IECLB.

    Podes enviar-me teu e-mail?

    Finalmente, convido-o a ler o blog para o qual contribuo, uma vez que oportunamente hoje pela manhã escrevi sobre as religiões neopentecostais: www.chuvaacida.info

    Um abraço!

    Guilherme A. Heinemann Gassenferth
    Joinville

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    1. Guilherme, Obrigado pelas palavras amáveis. Não sei se ainda te encontro por aqui,mas o meu e-mail é clovishl@mythos.art.br
      Um abraço

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