sexta-feira, 23 de março de 2012

A generosidade fiscal de Deus


Por esses dias recebi um comunicado seco da Secretaria da Fazenda da prefeitura da minha cidade, informando que havia débito de IPTU. Caso não passasse num exíguo prazo de alguns dias na Prefeitura para acertar os débitos pendentes, o meu nome seria incluído na dívida ativa do Município.

Tremi na base. Logo eu, que sempre procuro andar dentro da lei e pagar direitinho as minhas contas. Entrar na lista negra dos devedores do Fisco não era exatamente o que eu apreciava.

Virei gavetas do avesso e desenterrei todos os carnês de IPTU desde 2001. Fui à cata dos que não estavam no respectivo envelope, tudo para saber exatamente do que se tratava. Misteriosamente, alguns carnês haviam sido extraviados ou guardados em algum lugar que, quando a gente atinge certa idade, é simplesmente apagado de nossa mente.

A minha filha prontificou-se a ir até a Prefeitura para ver o que estava havendo. Ela também havia recebido a mesma notificação. Não sendo afeita a ficar pendurando contas no prego do esquecimento, foi atrás.

“Pai, sabe aquela história do IPTU? Por alguma razão, faltava o pagamento de uma única prestação do carnê do ano passado, no valor de 35 reais!”

Ela pagou a dívida e ficou mais tranquila, embora revoltada, porque todos os anos a Prefeitura alardeia “abatimento da dívida ativa” para devedores contumazes. Eles já sabem de antemão que não pagar impostos gera benefícios posteriores. Para receber parte, o Estado “esquece” o grosso da dívida, passando uma borracha. A gente que paga os impostos rigorosamente em dia e não deixa nada pendente, sente-se otário diante de relapsos que deixam tudo atrasar para pagar menos mais tarde.

Foi nisso que veio à minha mente uma celebrada afirmação do Reformador Martim Lutero. “Esto peccator et pecca fortiter” (seja um pecador e peque forte), aconselhou ele numa de suas muitas pregações dominicais. O objetivo era valorizar a graça de Deus.

Muitos cristãos ficam com uma listinha na mão do que deve e não deve ser feito, pode ou não pode ser experimentado, dito, visto, ouvido e pensado. A sua vida vira um verdadeiro inferno de pequenas leis e regras áureas. O objetivo é a clara tentativa de manchar o menos possível a alva túnica com que pretendem apresentar-se diante do Senhor no juízo final.

Alguns até se aplicam em sublinhar algumas coisas nessa lista que devem ser destacadas como mais importantes do que outras. Outros se esmeram ao extremo para montar uma lista para ser cumprida pelos outros e tornam-se intransigentes. Gostariam de ter um lugar à direita do Senhor para alertar contra eventuais benevolências exageradas com este ou aquele devedor, que em sua visão merecia maior rigor no juízo divino.

Lutero é cruel. Ele reduz essas listas de boas intenções a pó. “Tudo isso não serve para coisa alguma.” No final de anos de bom pagador de impostos, vem o Fisco ameaçar você de inclusão na dívida ativa por conta de uma prestação de 35 reais. Já aqueles que deixam tudo atrasado recebem regalos do Fisco, para que paguem ao menos uma parte do que devem.

Não que a graça de Deus seja comparável à generosidade fiscal da Prefeitura da minha cidade. Muito menos que agora você ou eu devêssemos parar de pagar as nossas contas só porque a perspectiva futura é de que nos perdoem boa parte delas no futuro.

A graça de Deus independe da nossa listinha de pessoas comportadas e cumpridoras dos seus deveres. “Peque forte!” Somente assim você saberá dar valor à graça, que nos recolhe bem do meio do lodo em que nos metemos todo santo dia, nos dá um banho e passa o melhor perfume para receber-nos em salões da mais alta nobreza.

Nesse contexto, sempre é bom lembrar que não existem “pecadinhos e pecadões”. No imaginário popular, o pecado é quase como algo que a gente vai acumulando ao longo da vida, como dívidas do IPTU, por exemplo. Um dia, sem mais nem menos, a gente acha que vai parar na “dívida ativa” de Deus, uma lista de gente que, com certeza, vai amargar o inferno por conta das coisas que fez (ou deixou de fazer!).

O pecado não é uma desobediência aqui e outra ali, numa lista pré-determinada. O pecado é uma condição. Segundo essa visão, não somos a soma da nossa lista de pecados diante de Deus, mas simplesmente pecadores. E isso nos lança na condição de afastados de Deus. Nesse sentido, todo o esforço para “pagar as nossas dívidas mantendo os carnês em dia” não ajuda em coisa alguma.

Em outras palavras, com os carnês em dia ou não, todos nós já estamos na lista da dívida ativa de Deus. Não há como escapar. Por mais que nos esforcemos, sempre haverá um carnê que sumiu ou uma prestação que não foi quitada. Os nossos 35 reais estarão esperando por nós e nos lançarão inevitavelmente na lista negra dos devedores.

Por isso, diante de Deus e de sua graça, o comportamento daqueles que jogam os carnês fora e ficam esperando a generosidade da “prefeitura” divina é o correto. As contas já estão pagas e eventuais dívidas serão perdoadas. Cristo nos liberta da condição de devedores – de pecadores – e nos reaproxima de Deus. A distância que nos separava desaparece. Assim, diante de Deus, nada de listinhas ou de carnês quitados...

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