quinta-feira, 29 de março de 2012

O estado laico deve ser ateu?


A recente controvérsia sobre a presença de símbolos religiosos em repartições públicas dá muito pano para manga. Dizem aqueles que querem ver as assembleias legislativas, as câmaras de vereadores, os gabinetes das autoridades, os tribunais e toda e qualquer parede de repartição pública livre de crucifixos, que este é um imperativo constitucional de um Estado que se auto-define “laico”. As igrejas é que andam escandalizadas com isso.

Na verdade e a bem dela, essa onda nem deveria escandalizar tanto assim as igrejas. Quem tem memória, irá lembrar que no seu próprio seio houve e há movimentos que querem banir os crucifixos até das próprias igrejas e de seus altares. Os defensores dessa onda “anabatista” argumentam que o crucifixo remete ao Jesus morto, que não se encontra mais na cruz, uma vez que ressuscitou na Páscoa. Agora querem escandalizar-se porque a crescente secularização do mundo exige o fim da cruz nas paredes dos juízes?

Uma recente obra publicada na França sobre o tema – com o instigante título “La Laïcité Falsifiée” (A Laicidade Falsificada), do sociólogo Jean Baubérot, professor da cátedra de sociologia da laicidade da École Pratiques des Hautes Études –, mostra que há muita confusão em torno disso também na França. Sem aprofundar a discussão, a tendência é um debate raso, não é mesmo? E nessa rasura confunde-se “laico” com “secular”, deixando de entender o Estado como laico para passar a exigir que seja “ateu”. A defesa do laicismo de Estado tem preconizado o ateísmo de Estado. (Leia mais sobre o assunto do livro aqui).

No Brasil estamos vivendo uma inacreditável demanda de leis. Um legalismo exacerbado está tomando conta do caldo social, numa sociedade notoriamente descumpridora das leis e consciente de que elas não melhoram as relações. Não adianta botar na lei, porque ninguém cumpre e ninguém fiscaliza o seu cumprimento. Mesmo assim, aqui tudo vira lei. Tem música que ofende a mulher? Cria-se uma lei que proíbe contratar cantores dessas canções com dinheiro público. Simples assim, mesmo que seja uma lei que fira a liberdade de expressão. Cresce a criminalidade de adolescentes explorados por bandidos maiores para fazer o serviço sujo? Mude-se o ECA para acabar com a proteção aos bandidos infantes inimputáveis, mesmo que isso desmonte um estatuto criado para proteger os nossos filhos da truculência do Estado.

Já a febre pelo Estado laico está criando leis estaduais banindo símbolos religiosos das repartições públicas, o crucifixo como a principal peça a ser retirada. Nessa febre, o Estado laico obriga o juiz a ser ateu, porque se ele basear seu veredicto nos princípios regidos pela cruz que enfeita o cenário ao fundo do tribunal ele estará sendo “parcial” e “tendencioso”. Como se o fato de não haver mais a cruz ali melhorasse a sua habilidade de julgamento...

Em outros países, como a Inglaterra, a coisa já chegou ao ponto de proibir o funcionalismo público de ostentar símbolos cristãos no próprio corpo, como em correntes no pescoço ou brincos nas orelhas. Nada pode lembrar a cruz. Isso já se tornou um fundamentalismo às avessas, que confunde laicidade com ateísmo imposto pela lei.

Por outro lado, quando se trata de acolher direitos das minorias, como a dos homossexuais, por exemplo, exige-se do Estado que baseie suas leis nos mais rígidos e literais princípios expressos no livro sagrado dos cristãos, que condena expressamente a prática do homossexualismo. Aqui vale até mesmo ignorar um século de pesquisa histórico-crítica do texto bíblico e voltar a olhar a Bíblia não mais como uma construção da igreja primitiva mas outra vez como obra lançada por Deus diretamente do céu sobre as nossas cabeças.

É uma dualidade inadmissível.

A condição laica do Estado não se apura pela “cruzada” contra a cruz ou outro símbolo religioso qualquer. O estado laico dá ampla liberdade religiosa, inclusive a magistrados, parlamentares, governantes e seu staff de servidores públicos. Eles podem ter fé em Javé, em Cristo, em Maomé, em Buda, em Iemanjá ou em quem quer que seja. Esse Estado, entretanto, não pode basear suas decisões, leis ou princípios em nenhum dos preceitos oriundos dessas crenças ou de seus escritos sagrados.

Obviamente, isso é difícil. É quase impossível, eu diria. É por isso mesmo que a problemática da laicidade e da secularização continua sendo um campo de difícil compreensão, quando não se torna um terreno minado, em que imperam os equívocos. É bem isso que está se vendo no Brasil (e em muitos outros países no mundo todo) no momento.

E é exatamente neste ponto que a teologia deveria empenhar-se mais para dar uma contribuição de peso a este debate. As igrejas ligadas ao CONIC deveriam protagonizar a reflexão sobre Estado e Laicidade, até como demonstração de que não está mais em seus planos impor sua fé à cultura da nação. Isso é coisa do período colonial, um tempo, aliás, do qual a nossa legislação é pesada herdeira.

Livrar a legislação do ranço colonialista é uma tarefa dura, que não se resolverá com “leizinhas” proibindo juízes de pendurar o crucifixo no tribunal. Precisamos de igrejas que sejam capazes de dizer a seus fieis que não podem continuar a querer impor o legalismo bíblico à legislação. Num Estado laico, o direito de todos só pode ser construído a partir de um amplo acordo que respeite as particularidades de cada um sem imposições unilaterais.

Um comentário:

  1. Boa reflexão. Os hospitais não estão tão longe dessa discussão, afinal temos pacientes judeus, ateus... Complicado!!!
    Abraços
    Nilton

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