quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O velho e o ônibus


Nos arredores da cidade de Hebron (Al-Khalil), a nordeste do centro histórico, localiza-se o Wadi Al-Ghrous, um vale localizado entre as duas colinas onde estão instalados dois assentamentos israelenses: Qiryat Arba (ao sul) e Givat Harsina (ao norte). O primeiro foi estabelecido em 1968 e o segundo no início da década de 1980 por colonos removidos do Sinai após o tratado de paz entre Israel e o Egito. Algumas famílias palestinas continuam vivendo ali, resistindo à pressão criada pelos assentamentos circundantes, que se manifesta normalmente através do confisco de terras e da violência dos colonos. Em meio a esse conturbado ambiente, encontra-se a história de perseverança de um velho e seu ônibus.

Sozinho, agarrando-se ao pouco que resta de sua terra, um idoso de 80 anos chamado Abd Al-Hasib Atta Zaloum passa a maior parte do tempo embaixo de uma árvore. Durante toda a sua longa vida testemunhou inúmeros acontecimentos-chave do conflito árabe-israelense, como as guerras de 1948 e 1967. Também testemunhou a formação e a expansão dos assentamentos israelenses à sua volta, já a partir do ano de 1968.

Desde o princípio esses assentamentos se constituíram tomando terras palestinas sejam privadas ou estatais (ou assim declaradas pelo Estado ocupante, Israel), às vezes vagarosamente, às vezes abruptamente. Isso é realizado normalmente através de um engenhoso sistema que utiliza medidas de segurança que inviabilizam o acesso à terra e leis otomanas de confisco de terras não cultivadas durante três anos. As terras pertencentes a Abd Al-Hasib não ficaram imunes a esse processo de desapropriação.

Localizadas junto ao assentamento de Qiryat Arba, cuja população atual gira em torno de oito mil habitantes, suas terras também sofreram o mesmo processo de desapossamento ao qual tantos outros palestinos estão sujeitos. De seus originais 21 dunums de terras restam-lhe apenas 4 dunums (1 dunum = 1.000 m²). Como em tantos outros casos, o motivo declarado pelas autoridades israelenses foi a proteção dos assentamentos através da criação de área de isolamento que provesse uma espécie de faixa de segurança para as instalações desse, como a escola para as crianças dos colonos que fica próxima às terras de Abd Al-Hasib.

Essas medidas de segurança foram impostas à custa da propriedade privada de um idoso inofensivo, sem que lhe fosse dada qualquer compensação pelas perdas, o que deveria ser a prática em qualquer sociedade sob o Estado de Direito. Ao contrário, os próprios assentamentos que provocaram essa destituição forçada é que estão em flagrante violação com as leis internacionais, de acordo com a Quarta Convenção de Genebra, segundo a qual é ilegal a transferência de uma população para territórios ocupados pela força ocupante.

Mais de 100 assentamentos israelenses foram erguidos desde 1967 na Cisjordânia, para os quais foram construídos em meio a um território alheio rodovias, sistemas de canalização de água, redes de luz e eletricidade aos quais a população local, os palestinos, tem pouco ou nenhum acesso.

A partir de 1994, durante o processo de Oslo, foi estabelecido que a Cisjordânia seria divida em áreas A, B e C. As áreas consideras A estariam dali em diante sob controle total da Autoridade Nacional Palestina, pelo menos em tese. Já as áreas consideradas C (quase 2/3 da Cisjordânia) permaneceriam sob controle total israelense, sendo as áreas B um misto das duas: controle civil palestino e militar israelense.

Do mesmo modo que tantas outras nas imediações de assentamentos, as terras de Abd Al-Hasib caíram dentro da Área C. Isso significou que qualquer construção realizada dali em diante necessitaria da aprovação das autoridades militares israelenses.

Como regra geral, é praticamente impossível para um palestino conseguir permissão para construir nessa área, não restando outra opção a não ser fazê-lo ilegalmente. Ordens de demolição são emitidas pouco tempo depois do término das construções e, após o esgotamento de todos os recursos possíveis, aos quais a grande maioria sequer tem acesso, vem a demolição de fato. Assim foi com a casa que Abd Al-Hasib construiu em suas terras em fins da década de 1990, demolida pouco tempo depois de sua construção, no ano de 2000. A retirada forçada de sua casa pelos soldados e policiais israelenses resultou em algumas sequelas, principalmente em seu braço direito, quebrado enquanto resistia à remoção forçada.

Seu filho buscou então uma solução para seu pai que insistia e ainda insiste em permanecer vivendo em suas terras até o dia que morrer. Comprou para ele um ônibus quebrado de uma companhia de Beit Sahur por 400 shekels para que pudesse continuar ali. Não sendo uma construção, o ônibus não está sob ameaça de demolição pelas autoridades israelenses. Já há dez anos o idoso Abd Al-Hasib vive em seu ônibus, cerca de 20 metros de sua antiga casa demolida.

As condições dentro dessa residência, o ônibus, são consideravelmente austeras. Não há água encanada, nem banheiro. Há apenas alguns colchões, uma televisão, um rádio e um fogão a gás simplíssimo. Algumas janelas do ônibus estão quebradas ou faltando, o que durante o inverno torna as condições ali difíceis de serem suportadas. Adjacente ao ônibus encontra-se a árvore onde o idoso passa a maior parte do tempo. À primeira vista é possível pensar que alguém vivendo nessas condições se sinta miserável e infeliz, mas não é o caso de Abd Al-Hasib. “Eu tenho tudo aqui: pão, água. Eu prefiro viver aqui do que em um hotel cinco estrelas,” diz ele, apontando para o que mantém próximo ao alcance de suas mãos.

O insistente idoso permanece firme em sua terra, temendo que, caso a deixe, ela seja incorporada ao assentamento adjacente de Qiryat Arba. Os colonos dali costumavam importuná-lo regularmente até que fosse erguida uma cerca há oito anos. Entretanto, a mesma lhe barrou o acesso à maior parte de suas terras, restando apenas menos de um quinto do que tinha anteriormente. Ainda assim, esse exíguo lote de terra é visado por aqueles que desejam usá-lo para expansão do assentamento.

Alguns anos atrás um advogado veio até ele interessado em comprar suas terras e ofereceu-lhe um altíssimo valor por elas. Inicialmente, foi oferecido em torno de 30.000 dinares jordanianos por cada dunum de terra (um dinar jordaniano costuma valer entre 2 a 2,5 reais).

Suspeitando algo estranho, Abd Al-Hasib continuou negociando e conseguiu aumentar o valor para 100 mil dinares por dunum. Finalmente ele disse que não venderia a terra, já que sabia que tal preço só poderia ser pago por colonos ideológicos interessados na expansão do assentamento próximo. Então, disse que toda sua terra junta não valia 10 mil dinares jordanianos e expulsou o advogado dali.

Inicialmente, sua mulher lhe fazia companhia morando com ele no ônibus. Porém, há cerca de oito meses teve que se retirar dali por causa de problemas de saúde que praticamente a imobilizaram. Ela vive agora na casa do filho, há poucas centenas de metros dali. Agora resta apenas o velho solitário, sentado debaixo de sua árvore ou dormindo dentro de seu ônibus.

“Eu sou como um rei aqui na minha terra. Eu tenho uma TV e posso ouvir no rádio Umm Kulthum (famosa cantora egípcia). O rei da Jordânia não poderia vir aqui e viver aqui, pois precisaria de seus guarda-costas. Eu tenho só um protetor: Deus”, afirma.

Resoluto em terminar seus dias sobre o chão que legitimamente lhe pertence, o idoso Abd Al-Hasib Atta Zaloum resiste firme ao que é apenas um exemplo do lento avanço do processo de desapontamento que ocorre na atualidade em toda a Cisjordânia. Ao contrário do habitualmente veiculado pela mídia, não é a violência a principal arma da maioria dos palestinos em sua longa luta contra quase 45 anos de ocupação, mas a paciente persistência como a do velho em seu ônibus.

GABRIEL MATYIAS SOARES, brasileiro, observador ecumênico em Hebron. Jerusalém, quinta-feira, 1 de setembro de 2011 para ALC

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